(El País, 01/09/2015) 1925. Einar e Gerda Gewener são um casal de ilustradores unido desde o começo do século XX. Casaram-se jovens, ele com 22, ela com 19, quando ainda estudavam na escola de arte de Copenhague. Einar é um paisagista de renome (ganhou o prêmio Neuhausens em 1907), e as delicadas ilustrações de Gerda mostrando jovens damas cheias de glamour aparecem habitualmente na Vogue francesa e na La Vie Parisienne. Um casal invejável e muito bem sucedido. Uma tarde, uma das modelos de Gerda não aparece no ateliê. Einar se voluntaria para ajudá-la e coloca um vestido de seda que se transforma numa revelação vital. Sente-se tão à vontade com a roupa que decide passar a se vestir de mulher e a posar habitualmente desse jeito para sua esposa. Fará o mesmo também, esporadicamente, durante viagens à França e à Itália. Quando se instalam definitivamente em Paris, Einar abandona sua masculinidade e se apresenta ao mundo como Lili, a irmã de Gerda. Gerda mantém aventuras com outras mulheres, e os dois dão festas selvagens para o mundo artístico parisiense dos anos 1930.
Essa é parte da extraordinária vida de Lili Elbe, a primeira pessoa submetida a uma cirurgia de mudança de sexo da qual se tem notícia. Uma fascinante história que voltou a ganhar notoriedade meses atrás, quando as imagens do ator Eddie Redmayne caracterizado como Lili Elbe deram a volta ao mundo. Depois de ganhar o Oscar no papel de Stephen Hawking em A Teoria de Tudo, o britânico enfrenta outro tour de force com A Garota Dinamarquesa, filme dirigido por Tom Hooper, o mesmo que o fez cantar em Os Miseráveis e o que deu a Colin Firth a chance de ganhar um Oscar pelo papel de George VI em O Discurso do Rei.
O filme se baseia no romance A Moça de Copenhague (editora Rocco), de David Ebershoff, que narra com toques fictícios a história do casal e sua relação com a mudança de gênero. No filme, Alicia Vikander (O Sétimo Filho, Ex-Machina) interpretará Gerda, e entre os coadjuvantes estarão Amber Heard e Matthias Schoenaerts (de Ferrugem e Osso).
Foi em 1930 que Lili Elbe decidiu passar pelo bisturi. Estabeleceu uma amizade com o médico Kurt Wanekros, da clínica para mulheres de Dresden, e, saindo da casa que compartilhava com Gerda, mudou-se para Berlim, onde iniciaria uma série de operações (cinco ao todo) para redefinir seu gênero. Desfez-se dos testículos e recebeu o implante de ovários de uma mulher de 26 anos, algo totalmente revolucionário na medicina da época. Seu corpo rejeitou os órgãos, o que a obrigou a passar por outras duas cirurgias corretivas.
Elbe, depois da primeira operação, decidiu sepultar o nome masculino com o qual havia sido conhecida, e para isso contou com o beneplácito de Gerda na tarefa de apagar todos os vestígios de Einar Gewener. O casal solicitou ao rei da Dinamarca que anulasse seu casamento, e o monarca não só aceitou como também concedeu a Lili Elbe um passaporte compatível com a sua nova identidade. Lili morreu aos 50 anos, dois dias depois da sua quinta operação. Gerda voltaria a se casar, com um militar italiano de quem se divorciaria poucos anos depois.
A expectativa causada pelas fotos de Redmayne vestido como mulher e com vários quilos a menos pode ser comparada às críticas que o projeto está recebendo por não apostar em uma atriz transexual para dar vida a Lili Elbe. Apesar de anos atrás ter surgido o rumor de que Nicole Kidman seria a protagonista como Einar/Lili, tendo Charlize Theron no papel de Gerda, agora os mais céticos criticam o fato de Hollywood enfocar a transexualidade por um prisma que não contempla os atores transexuais.
Isso já aconteceu com Jeffrey Tambor em Transparent (papel que lhe valeu o Globo de Ouro de melhor ator cômico), e agora com Redmayne. “Por melhor que seja o trabalho de Eddie Redmayne, já é hora de que pessoas trans interpretem papéis trans”, comentava Susan Stryker, professora de estudos de gênero da Universidade do Arizona, no site Think Progress. Redmayne, por sua vez, preferiu evitar a polêmica. Em uma recente entrevista ao Telegraph, disse que “existe uma discussão muito válida sobre por que uma atriz trans não interpreta este papel, pois realmente há muitíssimas atrizes brilhantes, e estou convencido de que muitas o fariam de forma sensacional”. Redmayne, no entanto, evoca o período histórico do filme para validar sua escolha: “Uma das complicações é que hoje em dia há hormônios, e muitas mulheres trans tomaram hormônios. Nesse papel é preciso interpretar um lado masculino sem hormônios, e é um assunto que discutimos muito, porque naquele tempo não havia hormônios [sintéticos]”.
Com polêmica ou sem ela, o furor com o assunto transexualidade só faz crescer em Hollywood. Além do sucesso televisivo de Transparent (que prepara sua segunda temporada) e da expectativa com A Garota Dinamarquesa, há também The Three Generations, filme em que Elle Fanning interpretará Ray, uma trans adolescente que deixa de ser menina para virar menino. Dirigida por Gabby Dellal, o filme conta com Naomi Watts no papel da mãe e com Susan Sarandon como avó. A trans que de fato está triunfando e obtendo papéis de acordo com a sua condição é Laverne Cox. A atriz de Orange Is the New Black, capa da revista Time há alguns meses, conseguiu ser uma das protagonistas de Doubt, um drama da CBS que criou um papel pensado especificamente para ela.
Noelia Ramírez
Acesse no site de origem: Filme retrata a história de Lili Elbe, a primeira trans da história (El País, 01/09/2015)