(Revista Fórum, 10/09/2015) Conheça Amanda Marfree, a jovem que, depois de uma vida de marginalização e preconceito, encontrou no programa Transcidadania a possibilidade de mudar sua trajetória e ser a primeira transexual de São Paulo a se candidatar a um Conselho Tutelar
“Linda, vai lá! Arrasa!”. “Você é ótima. Nos representa!”. “Que demais. Eu também quero!”. Os elogios e frases acolhedoras ditas por colegas transexuais e cisgêneros de Amanda pouco antes da conversa que teve com a Fórum são graças às mudanças que teve em sua vida ao longo deste ano, bem mais recorrentes que as ofensas que tinha que ouvir no passado.
“Você é homem!”; “Tiazinha!”; “Mulher é o caralho” e ofensas ainda piores faziam parte do dia a dia da transexual que, por conta da violência e do preconceito, abandonou os estudos aos 17 anos para se aventurar no mundo da prostituição. “Era o único caminho que nós, travestis, tínhamos para seguir”, conta.
Amanda Marfree tem 30 anos e nasceu no corpo de um menino em São Gonçalo (RJ), cidade em que começou a se prostituir para bancar os hormônios que tomava e outras modificações necessárias para ficar mais parecida com o que ela realmente é e se sente: uma mulher.
Depois de sofrer todo o preconceito, marginalização e opressão a que travestis e transexuais estão expostas, depois de se prostituir no Rio de Janeiro, na Itália por meio da cafetinagem e de ter sido deportada para São Paulo, Amanda vive um ano diferente de todos os outros: ela encontrou, na capital paulista, o programa Transcidadania [saiba mais sobre o programa aqui], da prefeitura, se tornou a primeira beneficiária a concluir o ensino médio e está prestes a ser a primeira transexual conselheira tutelar da história do município.
Considerada a melhor aluna da sala – que era, inclusive, uma turma mista que contava com homens e mulheres cisgêneros, jovens e adultos -, a transexual foi incentivada a se candidatar à vaga de conselheira tutelar em Itaquera, bairro em que vive em São Paulo, por sua empatia e sua sensibilidade para com os mais desamparados.
“Me falaram que tinha essa oportunidade. Eu me interessei porque crianças e adolescentes que recorrem ao conselho tutelar são crianças desamparadas, que não têm proteção. Pessoas que já sofreram na vida e que foram desamparadas, como eu, entendem essa situação. Você tem que sentir na pele pra saber o que é”, diz.
Concluindo o curso de Direitos Humanos e prestes a começar um curso profissionalizante – ambos pelo Transcidadania -, Amanda hoje se considera uma pessoa politizada, uma mulher empoderada e ciente de seus direitos. O Conselho Tutelar, para ela, é só um primeiro passo para uma vida de dedicação aos mais oprimidos.
No futuro, quer se formar em Assistência Social para ajudar as pessoas e, principalmente, transexuais e travestis que viveram as mesmas mazelas que viveu e que, até hoje, não tiveram como ela o privilégio de encontrar um espaço e um apoio para poder expressar sua identidade sem a condição de marginalização. “Eu acho que no termo ‘LGBT’ a parte mais vulnerável é o ‘T’. Estamos sempre militando por isso, porque é a parte mais fraca e agredida”, avalia.
Confira abaixo a íntegra da conversa com Amanda.
Fórum – Como foi seu processo de identificação com seu gênero?
Amanda – Você se identifica desde que você se entende como gente, mas você não pode manifestar isso. Nem como gay. Desde que me entendo como gente eu me considero uma mulher, em um corpo de homem, só que não poderia me expressar. Com 15 anos, comecei a me montar à noite. Durante o dia me portava como homem, minha mãe não sabia.
Depois, minha mãe não queria me ver de mulher e falava: “você não precisa se vestir de mulher porque é gay, para se mostrar para o povo”. Mas eu não me vejo como gay, me vejo como mulher. Ela não entendia. Aí, com 16 anos, comecei a me prostituir para [comprar] hormônio, botar peito, que é o caminho que a gente faz e o risco que a gente corre.
Comecei a me prostituir em São Gonçalo, depois fui para Niterói e, com 20 anos, em Copacabana, recebi uma proposta para ir para a Itália. Rodei várias cidades, mas a que mais morei foi Perugia. Fiquei lá e, em 2007, fui deportada para São Paulo.
Fórum – Como era a sua vida na escola, antes de abandonar os estudos?
Amanda – No colégio, eu me assumia. Em casa, não. Lá eles debochavam, me chamavam de ‘tiazinha’, ‘feiticeira’, ”robocop gay’, ironizavam. Fiz Pedagogia no segundo grau. Eu ia de sainha dobrada.
A diretora já chegou a ser homofóbica, me chamou, disse que os meninos iam me pegar. Tive que fazer estágio e não podia falar nem que era gay. Tinha que falar que era homem heterossexual. Foi horrível, tanto que saí porque não vi futuro. Naquela época, ainda, não adiantava nada você se formar porque não tinha uma política pública que te favorecesse. Você era totalmente marginalizada.
É bem complicado para arrumar emprego. E eu não tinha segundo grau, que é o mínimo que eles pedem. Não adiantava me formar: com o preconceito que eu sofria por ser travesti, não havia nada que garantisse meus direitos. Larguei o colégio por conta do preconceito. Comecei a ir para rua porque me enxergava como mulher.
Fórum – E como foi sua experiência na Itália?
Amanda – Eu fui cafetinada. Ela me levou por 2 mil euros e, na época, foi horrível. Eu não sabia falar a língua. Não foi legal, sofri. Era muita cafetinação. Depois fui para Perugia, deu uma melhorada, mas depois fui deportada direto para São Paulo.
Não pude voltar para o Rio porque eu era ameaçada, me ameaçavam e ameaçavam de matar minha mãe. Queriam o dinheiro que faltava do contrato. Cobravam 2 mil euros. Fora que lá, além de pagar a diária, eu tinha que viver como clandestina.
Lá na Itália eu tinha uma amiga e pedi o número da irmã dela. Ela me deu, fui para a casa dela em São Paulo e fiquei lá. Minha mãe pedia para eu voltar, mas eu não voltei por medo. Então fui me prostituindo, que era a única saída que eu tinha. Depois teve o projeto [Transcidadania], que foi a luz na minha vida.
Fórum – Como é ser transexual em São Paulo? Já sofreu algum tipo de agressão física?
Amanda – Ser transexual em São Paulo é complicado. Não só em São Paulo, mas no país todo. Sofre preconceito, você anda na rua e as pessoas vulgarizam, chamam de ‘traveco’, debocham, gritam. Já andei com colegas minhas e acontecer de a gente discutir com camelô, já tomei ‘bandão’ de um. Segurança vê e não faz nada. Agressões físicas, eu sofri várias e a Polícia Militar não está nem aí para você. Se queixar com eles é a mesma coisa que nada.
Nunca recorri à polícia porque já sabia que seria constrangida. É você quem vai ser culpada e debochada. Eu trabalhava no Parque do Carmo. Lá eles tratam você que nem marginal, te arrastam para o camburão e te levam para a delegacia para fazer ficha, mandam calar a boca, ignoram seu nome social. ‘Cala a boca, você é homem’.
Fórum – E como conheceu o projeto Transcidadania? Como foi sua experiência?
Amanda – Uma amiga comentou comigo que ia ter uma inscrição para escolher as pessoas. Fui, tentei e fui chamada logo no início. Concluí o ensino médio e agora estou fazendo o curso de Direitos Humanos. Depois tem o profissionalizante. Se for técnico, quero radiologia, mas como faculdade quero Assistência Social.
Teve um contrato, deram toda a assistência me informando dos meus direitos e deveres. Fui em um colégio na Penha. Imagina uma travesti numa sala à noite, com adulto, adolescente, tinha de tudo. E era um colégio que não era preparado para isso, apesar de saber que eu tinha uma proteção por trás. Mas eu falei ‘meu deus, tenho que enfrentar isso’.
Nisso, fui no primeiro dia cheia de receio. Não abri a boca, minha voz é meio aguda. Aí cheguei para a professora de matemática e falei: ‘sou transexual, meu nome é registro de homem, mas prefiro ser chamada de mulher’. Ela foi lá no diário e mudou. Foi maravilhosa! De lá, comecei a me dedicar mesmo, porque minha vida sempre foi excluída da sociedade e nunca tive oportunidades. Quando eu tive essa oportunidade de me sentir humana, me sentir gente, eu agarrei de uma forma… Nunca tive um contato social, minha vida sempre foi me prostituir.
Mas aí fui super bem aceita pelo pessoal. Eu me dediquei de verdade, quis mostrar que, apesar de eu ser uma transexual, eu tenho capacidade como qualquer um. Tanto que no primeiro semestre tem prêmio de ‘honra ao mérito’ e eu fui a única de todos os terceiros anos a ganhar. Fui muito bem aceita, muito comentada. E lá tinha meninos se drogando, pessoal fazendo zoeira. Não caí nessa. Fui a primeira da sala. Aquilo para mim foi uma emoção muito grande. Quando terminou eu chorei, chorei, chorei. Porque me sentia gente, me sentia humana.
Lá me aceitaram muito, fiz amigos. Não tenho palavras. Lá mostrei que eu era capaz e não só um corpo. Os meninos chegavam em mim para perguntar de matéria. Eu era tida como a ‘CDF’.
Fórum – Como surgiu a ideia de se candidatar ao Conselho Tutelar?
Amanda – Me falaram que tinha essa oportunidade. Eu me interessei porque crianças e adolescentes que recorrem ao conselho tutelar são crianças desamparadas, que não têm proteção. Pessoas que já sofreram na vida e que foram desamparadas, como eu, entendem essa situação. Você tem que sentir na pele para saber o que é. Eu seria uma pessoa bem preparada para saber pelo que eles passam. Acho que uma pessoa que passou por essa situação vai saber.
Essa fase é complicada para adolescentes, imagina transexuais. Já são desamparados. Para se assumir nessa situação, pior ainda. Muitos estão ali, mas tem que se encubar. Tendo uma figura que os representa, que eles se veem ali, acho que é melhor.
Fórum – Como enxerga o fato de ser a primeira transexual a se candidatar a um Conselho Tutelar?
Amanda – Sinto um avanço, uma quebra de tabus. Sou a primeira, nunca teve isso. Será algo inovador para uma pessoa assim estar nesse cargo. E acho um avanço para o público LGBT. Dá visibilidade. Nós existimos e apenas não temos oportunidades.
Fórum – Você se considera uma militante da causa LGBT?
Amanda – Eu acho que no termo ‘LGBT’ a parte mais vulnerável é o ‘T’. Estamos sempre militando por isso, porque é a parte mais fraca e agredida. Sempre tive uma militância, mas não dessa forma. Eu não tinha voz e não tinha o conhecimento que eu poderia ir numa Câmara [Municipal], por exemplo. O Transcidadania me deu isso: me tirou do umbral e me levou para a luz.
Eu não sabia que eu podia ir numa Câmara, por exemplo, e gritar pelos meus direitos. Ele me deu isso. Depois me deu muita possibilidade, muita informação sobre por onde a gente pode correr, lutar, sobre nossos direitos, deveres.
Antigamente as travestis que estavam na rua não sabiam, estavam ali marginalizadas e achavam que era isso mesmo. O policial bate e acha que merece mesmo. Nunca tinha estado numa Câmara. Fui nas mobilizações pela inclusão de gênero no Plano Municipal de Educação (PME).
O Transcidadania foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. Foi tirar mesmo uma pessoa do buraco. Um gay sofre preconceito, mas não sofre tanto quanto uma travesti. Um gay tem apoio de uma sociedade, mulheres apoiam mais gays que uma travesti. Um gay tem mais possibilidade de um emprego. Sofre preconceito? Sofre, sofre homofobia. Mas a transfobia é pior ainda. O único lugar que a travesti tinha era a esquina, agora tem a escola. Com o projeto, está tendo mais visibilidade.
Fórum – Acha que o Transcidadania vem mudando a forma como as pessoas lidam com transexuais e travestis? Tem efeito até para aquelas que não são beneficiárias do programa?
Amanda – Estão mostrando o outro lado. Era só mostrado o lado obscuro da coisa. Eu fui a primeira a me formar, dei entrevista, no Facebook muita gente vem me cumprimentar, nas ruas… E dentro do colégio foi maravilhoso. Não é bom você ficar presa só dentro de um ambiente LGBT. É bom expandir o ambiente, ir para lugares de ‘gente normal’. Eu fui parar em um colégio em que não esperavam que ia entrar uma travesti.
Entrei do nada e mostrei que sou capaz. Aquilo foi uma abertura de portas tão grande que levei até uma colega minha agora para fazer o terceiro ano do ensino médio. Tem mais respeito. Antes era só prostituição, só se drogar. Agora, estão vendo que você existe, que não é só uma marginal. Na minha rua todo mundo fala “nossa, que bom que você vai ser candidata a conselheira”. Espero que tenha sempre mais e que isso não pare.
Fórum – Pensando a longo prazo, depois do Transcidadania e das eleições para o Conselho, o que espera para o futuro?
Amanda – Eu quero ser assistente social. Não fiz ainda faculdade porque não fiz o ENEM e ainda não tenho condições financeiras. Mas quero Assistência Social porque quero trabalhar com pessoas que estejam à margem da sociedade, porque eu gosto de ajudar o próximo. Já vivi ali e sei como é duro precisar de um apoio e não ter. Eu vejo isso e queria que esse projeto continuasse mais e mais porque não são só 100 travestis, são milhares precisando dessa oportunidade. Então, eu espero um avanço com esse novo prefeito que entrar de continuar esse projeto, porque ele não tem noção do bem que fez isso. Ele não sabe o quanto.
Fórum – Somente esse ano tivemos, na cidade, ao menos dois casos notórios de agressões e preconceito contra transexuais. Uma foi a Verônica Bolina, agredida e exposta por policiais no começo do ano, e outra foi a transexual que performou na Parada Gay em um crucifixo, representando Jesus Cristo. Como avalia esses episódios?
Amanda – A mesma situação que elas estavam, eu estou: de vulnerabilidade. Se ela [a Verônica Bolina] cometeu algo, ela tinha que cumprir e pagar sem passar por aquela agressão. Já vi coisas piores acontecendo e não dar em nada. Ela tinha que ser julgada pela lei e não pelos policiais porque eles não são a lei. Teve um abuso de poder extremo. Ela estava sendo muito espancada, sofrendo muita transfobia.
Essa menina crucificada, eu tava no carro de trás [da Parada LGBT]. Ela me representa, sim. Ela mexeu tanto porque a Parada Gay hoje virou um carnaval. Ela mostrou que travestis e transexuais são condenadas, perseguidas, chicoteadas, igual Jesus era antigamente. Ele era perseguido por pessoas ditas ‘de bem’. Depois de muito tempo que foram ver a importância dele. Que democracia é essa que você não tem uma lei que te assiste e que você não pode expressar quem você é?
Fórum – Que autoavaliação você faz depois dessa experiência do Transcidadania?
Amanda – Hoje em dia sou a Amanda com segundo grau completo, com apoio, com políticas que nunca deveriam ter me tirado. Pretendo me formar, sair da prostituição, ajudar meu próximo, aquele que está desamparado. E pretendo concluir minha trajetória de estudos, que nunca deveria ter parado.
Hoje sou uma mulher empoderada, eu pensava que não tinha esse poder. Não só eu como várias. Na região, muitas que me conhecem ficam felizes porque sabem que elas podem correr atrás de seus direitos.
Tenho colegas que já estão estudando fora do programa porque sentiram como é. Elas têm medo e vêm procurar ajuda. Elas vão atrás. Não iam porque pensavam que não iam ter abertura. Eu mesma pensava que não poderia frequentar colégio por conta da opressão.
Fórum – Caso seja eleita para o Conselho Tutelar, quais serão suas primeiras ações?
Amanda – Vou chegar, ver as regiões mais vulneráveis, conversar com as mães, encaminhar as crianças e adolescentes para o colégio, ver quem está sofrendo com mão de obra infantil, ver a população que sofre preconceito LGBT.
Para mim, agora, o principal é a questão da mão de obra infantil. Vejo muito isso: crianças vendendo bala em farol e fora do colégio. Essa parte é a pior. Crianças agredidas, espancadas, mães que têm problemas com drogas, pais alcoólatras. São casos graves.
Alguns dados graves para serem levados em consideração:
– 50% das transexuais e travestis que vivem em São Paulo, de acordo com a prefeitura, têm condições precárias de moradia (rua ou albergue); 31% têm silicone industrial injetado no corpo, e a grande maioria é expulsa de casa ainda na pré-adolescência, evadem da escola e têm como alternativa de vida a prostituição.
– De acordo com a organização europeia Transgender, o Brasil é o país onde mais ocorrem assassinatos de travestis e transexuais em todo o mundo. Entre janeiro de 2008 e abril de 2013, foram 486 mortes, número quatro vezes maior que no México, que ocupa a segunda posição da lista.
Por Ivan Longo
Acesse no site de origem: ‘O único lugar que a travesti tinha era a esquina. Agora tem a escola’ (Revista Fórum, 10/09/2015)