(O Estado de S. Paulo/Caros Amigos) Ao longo das 195 páginas de sua sentença, a juíza Kenarik Boujikian Felippe, da 16ª Vara Criminal de São Paulo, refutou todos os argumentos da defesa do ex-médico Roger Abdelmassih.
Ao analisar as provas, que totalizaram 10 mil páginas divididas em 37 volumes, a juíza afirma que “as declarações prestadas pelas vítimas são fidedignas e não possuem qualquer vício que possam maculá-las”. Então, conclui: “São relatos que formam um conjunto estarrecedor sobre a conduta do acusado. Uma avalanche de fatos absolutamente repulsivos e, não por outro motivo, as vítimas descreveram as sensações que possuem em relação aos mesmos como dor, raiva, asco, nojo, humilhação, medo.”
Em destaque na sentença o abuso de pacientes sob efeito de sedação
A juíza Kenarik assinala ainda que metade dos ataques do ex-médico ocorreu logo após o procedimento de retirada de óvulos, enquanto as pacientes se recuperavam da sedação. Outras vítimas dizem ter sido molestadas no consultório ou na sala em que eram feitos exames. Os crimes teriam sido praticados entre 1995 e 2007.
A seguir, alguns destaques da sentença selecionados pela reportagem do Estadão:
Ato inesperado – “O ato em si era absolutamente inesperado, pois jamais imaginariam que seria possível o médico, em quem depositavam confiança, pudesse praticar aqueles atos, beijá-las na boca, “com a língua”, que ele pudesse passar a mão em seus corpos, ou ainda, em alguns casos, praticasse ato libidinoso invasivo (conjunção carnal ou anal).”
Violência contra mulher – “É certo que a violência contra a mulher, e dentre elas, a violência sexual, é um mal que aflige porcentual significativo de mulheres de todo o mundo e a compreensão dos direitos das mulheres, como direitos humanos, não está efetivamente e integralmente incorporada pelos operadores da Justiça. Derrogar a moral determinante pelo poder patriarcal e fundamentada na discriminação de gênero é tarefa ainda a ser cumprida.”
Beijo – “O beijo constrangido também foi submetido ao mundo do Direito e o fato de não ser catalogado como conduta invasiva, tais como o sexo anal e oral, não afasta a tipificação do delito. Assim têm decidido nossos tribunais, que afirmam que beijar ou passar a mão pelo corpo da vítima pode configurar, sim, o atentado violento ao pudor.”
Quem é a juíza Kenarik Boujikian Felippe
Fundadora e ex-presidente da Associação dos Juízes para a Democracia (AJD), a juíza atua em uma ONG que trabalha pelos direitos de mulheres encarceradas e uma importante referência na luta pelos direitos humanos no Brasil. Conhecida por posições ditas “liberais”, a juíza Kenarik considera que penas altas não contribuem para o sistema penal.
Em entrevista à revista Caros Amigos, a juíza Kenarik Boujikian Felippe critica o sistema carcerário brasileiro, “onde a discriminação contra os pobres, contra os negros e contra as mulheres, expressa a constante violação de direitos consagrados na atualidade”.
Leia alguns trechos dessa entrevista:
“Caros Amigos – Você tem uma militância na área de Direitos Humanos, faz parte de uma ONG de questão carcerária de mulheres, pode falar sobre isso?
Você está se referindo ao Grupo de Estudo e Trabalho – Mulheres Encarceradas. Eu faço parte desse grupo que é uma rede, e trabalho na rede em razão de pertencer à Associação Juízes para a Democracia. Agora eu tenho uma militância, mas a militância não me tira uma atuação de Direitos Humanos como juíza, não me tira das relações da vida. Você pode ter a militância, mas a questão dos Direitos Humanos é uma coisa global, não é só de uma atividade ou uma coisa direcionada.
Caros Amigos – Você acha que o Estado trata diferente os direitos do homem e da mulher presa?
Trata completamente diferente. Um exemplo bem gritante, claro e incontestável é a questão da visita íntima. Os homens tinham há décadas aqui, em São Paulo, e as mulheres não tinham o direito de receber os seus companheiros, amigos. Esse grupo surgiu em uma conversa após uma palestra na OAB para discutir sistema carcerário, e no final eu falei que o Estado tratava diferente as presas dos presos. E aí um grupo de pessoas que eu já conhecia começou a conversar mais sobre isso. Foi quando surgiu o grupo. A gente começou a trabalhar com esse tema, o encarceramento feminino no Brasil, que assim como nos demais países tem um índice pequeno de participação em termos de população carcerária. A taxa de mulheres presas no Brasil é de mais ou menos 6%. Por outro lado, a gente vê que está acontecendo um fenômeno mundial de aumento do número de mulheres presas em razão, basicamente, de envolvimento com tráfico de entorpecentes. No Brasil nós temos um problema de dados. Hoje, o Ministério da Justiça faz um recorte de gênero, mas há uns cinco anos atrás não tinha. Não tem como ter políticas públicas se não se conhece nem qual é o seu mundo de trabalho, qual o percentual…. Eu acho que a mulher é sempre penalizada, seja presa, seja companheira de um preso, porque, se é ela que vai visitar, passa pela revista vexatória. Em dia de visita elas estão lá, não abandonam os companheiros. Mas vai em uma fila de um dia de visita em uma penitenciária feminina, não tem muito homem, são poucos. Tem mais a irmã, a mãe que leva os filhos… Na penitenciária masculina tem uma fila gigantesca de mulheres. Elas são muito abandonadas pelos homens. Nós tivemos aqui várias campanhas, inclusive estaduais, para mulheres, teve o mutirão ginecológico, e as mulheres presas nem entraram na história. É um plano para todas as mulheres do Estado, e as presas não entraram, é como se elas não existissem.
Caros Amigos – Elas são 6% do total da população do total de presos. É isso? E em números absolutos, quanto representam?
Hoje nós temos uma população aproximada de 450 mil presos. Acho que dá mais ou menos 25 mil se não me engano, alguma coisa assim, 30 mil.
Caros Amigos – Qual é o perfil dessa mulher?
Jovem. A maioria tem filhos, assume a chefia de família… Todas praticamente são pobres. O percentual de mulheres negras presas é um pouco maior do que as negras fora muro. Muitas trabalham, e quando trabalham dentro do sistema, esse é um dado de uma pesquisa que eu acho muito curioso, ela pode fazer o que quiser com o seu dinheiro. Mas eu perguntei: “o que vocês fazem com o dinheiro?”. A maioria das mulheres respondeu: “A gente reverte para a família”. E o que os homens fazem? “Ah,eu gasto comigo”.
Caros Amigos – No processo judicial, há discriminação? Existe algum momento em que a justiça trata de forma desigual a mulher e o homem?
Eu não conheço nenhum trabalho que tenha dito efetivamente isso, mas todo mundo que é da área de Direito fala que as mulheres são tratadas com um rigor maior. Existem algumas consequências práticas da falta dessas políticas públicas. Por exemplo, quem está em cadeia pública, provavelmente não vai ter uma defensoria pública quando fizer seus pedidos. Se o maior número de mulheres do Estado estão em uma cadeia pública, evidentemente ela vai ter menos estrutura para cuidar dos seus direitos.
Caros Amigos – Mas no caso da visita das mulheres, da revista, a forma como é feita não é ilegal na verdade? Tem aquele procedimento do banquinho.
Eu acho, eu acho que sim. É, existem outros procedimentos, esse do banquinho… Tem lugares que são terríveis. Por exemplo, uma juíza me falou que ela baixou uma portaria não permitindo mais revista vexatória, por conta do caso de uma mulher que era muito obesa e disse: “eu quero visitar meu marido, mas eu não consigo mais passar por essa situação toda vez que eu vou visitá-lo”. Ela relatou para a juíza como que era a revista e disse: “nenhum homem tinha me tocado, só o meu marido, e chegando lá eu tenho que passar por essa situação…”. A juíza constatou que eles usavam luva de pedreiro pra fazer a revista. Não se pode considerar isso uma coisa normal, rotineira. É ilegal, é desumano, fere todas as convenções, fere a nossa Constituição.”
Acesse na íntegra:
Justiça condena Abdelmassih a 278 anos de prisão (O Estado de S. Paulo – 24/11/2010)
O Estado brasileiro continua matando muito (Caros Amigos – novembro/2009)