(Carta Capital, 28/09/2015) Usar do espaço de privilégio para dar espaço para grupos que não o tenham é necessário, mas não se isso significar silenciá-los
Quando falamos da questão do protagonismo, sempre vem alguém dizer: “Qualquer um pode falar sobre opressões, não preciso ser negro para apoiar a luta”. Não precisa mesmo e é dever dos não negros se conscientizar e lutar contra as opressões. Mas, o que muitos não entendem é que são eles quem têm falado sobre nós ao longo do tempo.
Os trabalhos acadêmicos iniciais sobre essa questão, por exemplo, foram feitos por não negros justamente porque o racismo impede o acesso da população negra aos espaços acadêmicos. Muitos desses trabalhos são bons, sem dúvida, muitos não, mas a questão não é essa.
O cerne aqui é: se pessoas brancas continuarem falando sobre pessoas negras a gente não muda a estrutura de opressão que já confere esses privilégios aos brancos. Nós, negras e negros, seguiremos apartados dos espaços de poder. E nossa luta existe justamente por causa desse aparte. Daí, no movimento formado para combater isso, nós ainda seguiremos apartados?
Não perceber a importância disso me faz questionar até que ponto se é aliado. Como negra, não quero mais ser objeto de estudo, mas sim o sujeito que pesquisa. Se eu, como mulher negra, já estou fora de diversos espaços, um aliado veria a importância de eu falar sobre problemas que me afligem em vez de querer falar por mim. É necessário usar do seu espaço de privilégio para dar espaço para grupos que não o tenham, até porque esse privilégio foi construído em cima das costas de quem foi e é historicamente discriminado.
Recentemente a filósofa estadunidense Judith Butler esteve no Brasil e eu tive a oportunidade de conhecê-la. Eu estudo sua obra na minha pesquisa de mestrado e meu orientador foi convidado para um encontro com ela e pediu uma vaga para mim.
Ele acabou não indo porque precisava dar aula, mas disse para eu ir. Isso é empatia, perceber seu papel como aliado. Eu não conseguiria estar naquele espaço se não fosse por essa atitude consciente. Como feminista que estuda Judith Butler, era importante eu estar ali. Isso é ser sujeito político, caso contrário, é só validar nossa exclusão de certos espaços.
Mesma lógica vale para o feminismo. Mulheres brancas ganham até 30% menos do que os homens brancos na mesma função; negras, até 70%, ainda são minorias nos espaços de poder. Como um homem branco privilegiado não percebe que, se ele protagonizar essa luta, mulheres seguirão apartadas?
Se um homem quer se posicionar a favor do feminismo, não precisa necessariamente ganhar dinheiro escrevendo sobre isso. Pode conversar com seus amigos, repreender um amigo que chama uma mulher de gostosa e explicar que isso é assédio. Se for professor, não assediar alunas, trazer o tema para o debate em sala de aula, orientar alunas, se posicionar a favor de temas no departamento.
Se for pai, cumprir com sua obrigação sem achar que merece estrelinhas, limpar sua sujeira, lavar suas cuecas. Jornalistas podem abordar o tema com respeito, entrevistar mulheres, sobretudo mulheres negras que seguem sem muito espaço. Parlamentares podem colocar a questão na agenda política.
Em relação à questão racial, a mesma coisa. A pessoa pode convidar uma pessoa negra para escrever no seu site, se for empregador, contratar pessoas negras, se for professor, falar dos temas em sala de aula, incluir teóricos negros na bibliografia, convidar grupos para ir à escola, colocar em prática a lei 10.639.
Parar de rir de piadas racistas, apoiar ações do movimento negro. Discutir o racismo pelo viés da branquitude, começar a se responsabilizar pelo racismo. Começar a se perguntar: quantas vezes eu contribuí com a baixa autoestima da minha amiga negra por rir do cabelo dela? Quantas vezes naturalizei o lugar construído para a mulher negra?
Quantas vezes fiz um discurso lindo contra o racismo, mas silenciei uma mulher negra que tem mais legitimidade para falar de um tema que a atinge? Quantas vezes denunciei o preconceito, mas romantizei a relação com minha empregada negra? Mas o que me parece é que muitos só querem o título se estiverem sob holofotes.
O discurso de Viola Davis ao ser a primeira mulher negra a ganhar o Emmy de melhor atriz em série dramática em 67 anos nos mostra como é importante o protagonismo. Já vi gente dizer: “Ah, mas por que ela teve que fazer um discurso político?” Oras, porque a arte não está dissociada dos valores da sociedade, porque não existe arte pela arte. Porque a indústria é racista, basta ver.
E, nós como negras, nos emocionamos porque sabemos o que é ser preterida mesmo sendo boa, o que é não se ver. Então, a vitória de Viola é nossa. Uma pessoa branca não sente esse pertencimento, essa conquista como coletiva, pois a maioria das pessoas brancas já ocupa esse espaço.
O que pode acontecer é ficar feliz porque gosta dessa ou aquela atriz, mas para nós tem um significado de resistência, é como se todas nós pudéssemos ser Viola. Não perceber a importância da representatividade num país como o nosso, que teve 354 anos de escravidão e ainda mantém a população negra na subalternidade, me dá a impressão de que muitas pessoas precisam urgentemente rever seus conceitos. Ou o seu racismo mesmo.
Parem com a síndrome de privilegiado que julga que você pode falar sobre qualquer coisa. Poder, realmente você pode. Mas em determinadas instâncias, a pergunta que você deve fazer é: eu devo?
Acesse no site de origem: Homens brancos podem protagonizar a luta feminista e antirracista?, por Djamila Ribeiro (Carta Capital, 28/09/2015)