(O Globo, 08/10/2015) Professora de História da América Latina especializada na escravidão brasileira (que, em livro, compara à cubana), inglesa participou de seminário na Casa de Rui Barbosa
“Tenho 37 anos, trabalho na Universidade de Warwick, na Inglaterra, e me considero uma historiadora de gênero. Interesso-me pela história da mulher. Para estudar a escravidão no Brasil fiz um curso audiovisual de português. Passava umas duas horas por semana, ouvindo fitas de walkman, até que, um dia, aprendi”
Conte algo que não sei.
Os escravos e as escravas do Brasil, assim como de Cuba, sabiam usar e usavam as leis para melhorar sua condição de vida. Documentos provam que muitos compareceram diante de tribunais para reclamar seus direitos ou os de seus familiares. No Rio, havia defensores públicos que agiam em favor desse grupo. Em Havana também. Eram as chamadas “ações de liberdade”.
Quantas ações desse tipo foram abertas aqui?
Não há um número preciso, já que os historiadores ainda estão trabalhando sobre documentos encontrados no Arquivo Nacional e no Arquivo Geral da Cidade. Mas as ações de liberdade se contam aos milhares, aqui e em Cuba.
Algum caso a chocou?
Em agosto de 1884, a escrava Josefa Gonçalves de Moraes comprou sua própria liberdade e abriu um processo no Rio pela custódia da filha Maria, de 10 anos que, pela Lei do Ventre Livre, nascera em liberdade, mas teria que ficar sob a guarda do antigo senhor de Josefa até a maioridade. Na ação, ela argumenta que é a pessoa certa para cuidar da filha. Mas o antigo senhor diz que a alimenta e lhe dá educação, coisas que Josefa não poderia garantir.
E qual é o desfecho?
É triste: Josefa perde. Em 1886, o juiz Joaquim José de Oliveira Andrade escreve em sua sentença: “A menor Maria vive contentemente e é tratada com devoção por José Gonçalves de Pinho e sua mulher. A mãe, recentemente liberta e amasiada não é capaz de dar boa educação e cuidados”.
Mas tem que ter algum caso de sucesso, não?
Há o caso da negra liberta Maria Rosa, que escreveu uma carta à imperatriz Teresa Cristina alegando seus direitos e pedindo que sua filha Ludovina, também menor de idade, fosse incluída nas chamadas “cerimônias de liberdade”. Não sabemos quem autorizou sua inclusão, mas Ludovina foi entregue à mãe. Para mim, o interessante nesses dois casos é que eles mostram que as mulheres, não só os homens, sabiam fazer pressão.
Há uma mulher como Zumbi dos Palmares?
Não que se saiba, mas os estudos seguem. Quando a gente lê sobre Zumbi, os quilombos, ou a escravidão como um todo, no Brasil e em Cuba, encontra um ambiente masculinizado. Sempre me perguntei: onde estavam as mulheres? Como viviam isso? Então passei seis anos entre Rio e Havana e o conteúdo está no meu primeiro livro.
A escravidão morreu?
A escravidão foi abolida e não existe, de forma legal, no Brasil desde 1888, mas ela obviamente está aí, acontece na prática. Aposto que aqui mesmo, no Rio, há muita gente escravizada, convivendo com a mais absoluta falta de controle sobre sua própria vida.
Como vê o futuro de Cuba, após as pazes com os EUA?
Não me arrisco muito a palpitar nesse assunto porque ele suscita discussões acaloradas, mas acho que Cuba vai se aproximar mais dos EUA e que, em consequência, terá cada vez mais desigualdades sociais. Só espero que o país não abra mão das importantes conquistas que obteve.
Se pudesse escolher, onde moraria de novo? No Brasil ou em Cuba?
(Risos) Preferiria ser rica no Brasil, ou então pobre em Cuba. Rico em Cuba não é tão rico e pobre no Brasil é pobre mesmo.
Cristina Tardáguila
Acesse o PDF: Camillia Cowling, pesquisadora: ‘As escravas sabiam usar as leis em seu favor’ (O Globo, 08/10/2015)