(El País, 21/10/2015) Certo dia, uma menina entrou no ateliê de Sônia Gomes, no centro de Belo Horizonte, e ao se deparar com montes de retalhos, rolos de linha, e tesouras, e ainda sentir um cheiro de café, disparou: “Nossa, isso aqui parece a casa da minha vó”. Os tecidos (amarrados, torcidos, alinhavados e bordados) que ocupavam o espaço compõem obras como as que fazem parte da instalação que a artista plástica tem hoje exposta no Sesc Pompeia, no 19º Festival de Arte Contemporânea Sesc Videobrasil. Mas, de fato, o ambiente guarda muitas semelhanças com um quartinho de costura, e Sônia, uma mineira de 67 anos, com uma avó habilidosa e acolhedora.
O Videobrasil deste ano, que carrega o subtítulo de Panoramas do Sul e fica em cartaz até 12 de dezembro em São Paulo, tem o objetivo de retratar a arte do “sul global”. É na figura de Sônia – uma mulher negra que despontou como artista aos 60 anos criando com tecidos e combatendo vários tipos de preconceito – que o evento faz isso de maneira mais atrativa e contundente. “Foram muitas as barreiras que tive que derrubar. Por ser mulher, por ser negra, por não ter idade para ser considerada um dos jovens talentos da arte brasileira...”, diz. Única brasileira da atual Bienal de Arte de Veneza, Sônia não se furta à luta, que encara com talento e resistência. No Sesc Pompeia, ela exibe a união de oito trabalhos feitos entre 2004 e 2015 na exposição principal, Artistas Convidados.
Filha de mãe negra e pai branco, Sônia nasceu em Caetanópolis, no interior de Minas Gerais, e, aos quatro anos, foi entregue pela avó materna à família do pai. A mãe da menina tinha morrido e sua avó não tinha condições financeiras para cuidar da neta. De cara, Sônia percebeu que tinha adentrado um mundo diferente do seu – mais erudito e menos afetuoso. Fugiu de casa diversas vezes, até que, na última tentativa, aos cinco anos, foi fechada na biblioteca e, numa crise nervosa que ela hoje vê como uma catarse, rasgou livros e quebrou janelas. E decidiu ficar. “Nunca mais tentei fugir. Eles me deram uma boa educação, reconheço. Mas não tive o afeto. Morei lá a minha vida inteira, participando de tudo, mas a questão racista eu via em casa mesmo”, conta a artista.
Os tecidos – em retalhos rasgados ou em finos bordados – sempre fizeram parte de sua vida. A avó materna, parteira e benzedeira com quem ela não perdeu o contato, fazia patuás e trançava fios que usava para benzer as pessoas. O pai, com o seu lado da família, entrava com colchas de richelieu e bordados da ilha da Madeira. Foi assim que a mistura do popular com o erudito entrou na veia de Sônia, que no entanto se fez professora, primeiro, e depois foi estudar Direito na universidade. Com a exceção de colares e bolsas que ela fazia aproveitando os materiais instigantes que encontrava e do hábito de desconstruir peças de roupa para deixá-las à sua maneira, a criatividade era para ela um monstro adormecido. “Comecei a experimentar dando um toque pessoal às minhas coisas. Talvez até em busca de visibilidade, para que as pessoas me vissem. Acho que a gente nasce artista, então, em alguma fase da sua vida, a arte vem à tona, se não você enlouquece”.
Sônia não enlouqueceu porque, aos 45, liberou o monstro. Já tinha um apartamento pequeno em seu nome, então encarou as portas de uma escola, onde pôde conhecer pessoas “doidas”, como ela era vista por muitos. O reconhecimento tardou, mas veio justamente no seio daquilo em que ela acreditava: trabalhar com tecidos e não com tintas (que, de passagem, lhe causam alergia), resgatar as raízes populares sem se despir da erudição, assumir-se mulher madura e negra.
A primeira aprovação veio de uma famosa loja de antiguidades de Belo Horizonte. Logo depois, em São Paulo, uma primeira exposição individual, Objetos, foi organizada pelo galerista Thomas Cohn, mas não obteve sucesso algum. Foi em 2012, na Arte BA de Buenos Aires, que ela foi celebrada pela primeira vez – com os rótulos de brasileira, negra, afim à arte popular… mas celebrada – e logo depois, já representada pela galeria paulistana Mendes Wood DM, chamou a atenção na Art Basel, da Suíça, em 2013, e no suplemento cultural do jornal Financial Times, que publicou uma de suas obras (Memória, de 2004).
O boom se deu com a 56a Bienal de Veneza, onde é a única artista do Brasil a expor na mostra principal (até 22 de novembro). O tema da vez é All the world’s futures (Todos os futuros do mundo), e o curador, o nigeriano Okwui Enwezor – diretor do museu alemão Haus der Kunst, em Munique, e reconhecido pensador da questão racial nas artes visuais. “As pessoas são extremamente preconceituosas, então têm medo e reagem assustadas contra nós. Acho que determinados preconceitos foram tão fortes, que o prejulgamento por ser mulher eu nem senti muito”, conta a artista. Ela diz sentir-se lisonjeada pelo convite de Enwezor, que se deparou com o trabalho de Sônia depois da participação dela na exposição Made by… Feito por Brasileiros, que ocupou o antigo hospital Matarazzo, em São Paulo, em setembro de 2014.
Mas o passado pouco importa, diante de tantos projetos futuros. Em breve, ela planeja alugar uma casa e passar uma temporada em São Paulo para ficar mais próxima de sua galeria. E está prestes a começar a trabalhar em um vestido de noiva de seda pura que acaba de receber por correio – presente de uma mulher que leu sobre ela no jornal. “É o tipo de coisa que me faz seguir vivendo. Levanto da cama e vou ao meu ateliê todos os dias, como se fosse um emprego”. À mineira, com seus tecidos, Sandra faz sua revolução.