(Luciana Araújo/Agência Patrícia Galvão, 29/10/2015) ONU Mulheres propõe atingir até 2030 a efetiva igualdade de gênero
Durante o Painel Pequim+20: Acesso à justiça para mulheres em situação de violência, a representante da ONU Mulheres no Brasil, Nadine Gasman, destacou que a proposta da instituição de atingir em 2030 a efetiva igualdade de gênero não deve ser encarada como uma utopia. “A ideia do Planeta 50/50, de conseguirmos nos próximos quinze anos uma transformação muito grande, tem sido a marca da nova diretoria executiva da ONU Mulheres.”
Nadine mencionou que a diretora executiva da entidade das Nações Unidas para a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka, faz sempre o paralelo com a luta pelo fim do Apartheid na África do Sul, ao discutir o prazo para que se atinjam as metas de desenvolvimento no tocante à equidade de condições de vida e direitos para a metade feminina da população mundial. Phumzile foi a primeira mulher a ocupar a vice-presidência da república sul-africana, entre 2005 e 2008.
Nadine lembrou ainda que “há 20 anos o tema da violência contra as mulheres estava fora da agenda pública. A luta das mulheres no mundo inteiro fez com que o tema seja uma questão da agenda pública global”. E destacou que os principais problemas para efetivar a igualdade de gênero são o subfinanciamento das políticas públicas e a dificuldade de efetivação das leis de proteção e promoção dos direitos das mulheres.
Violência e racismo
O evento destacou a necessidade de responder à sobrerrepresentação da população negra em geral e das mulheres em particular nos índices de violências no país.
A diretora de conteúdos do Instituto Patrícia Galvão, Marisa Sanematsu, apresentou dados gerais sobre violência contra a mulher no país e destacou que, “ao falar de violência no Brasil, é inescapável falar sobre racismo. As mulheres negras são as que mais sofrem violência. Jovens negras de 15 a 29 anos são as mais agredidas”. E quando se soma a esses dados a violência contra jovens negros, maioria absoluta das vítimas de óbitos por agressão no país, cresce o impacto nas vidas das mulheres negras. “As mais agredidas e também vítimas da violência que atinge a juventude. E, ao contrário do que se vê em relação às mulheres em geral, que contam com leis e políticas de atendimento, essas mulheres mães de jovens assassinados não têm apoio institucional nenhum”, afirmou Marisa.
Acesso à justiça numa perspectiva de gênero, raça e classe
A ouvidora-geral da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, Denise Dora, ressaltou que “os temas da violência contra as mulheres e do acesso à justiça exigem que agora, com todas as informações e experiência, passemos a pensar em todas essas questões entrecortadas pelas noções de raça e classe”.
Dora lembrou que “nós que trabalhamos com justiça comunitária e com as promotoras legais populares vemos que, entre as mulheres negras, quem não passou por isso [o assassinato de filhos] é assombrada pela possibilidade de passar o tempo todo. Se não acontece realmente, está acontecendo simbolicamente e é uma tortura psicológica”.
Outro tema destacado pela ouvidora Denise Dora como uma urgência para o debate feminista é “a aplicação da justiça nos casos de violência doméstica e sexual para as mulheres negras”.
Cida Bento, psicóloga e diretora executiva do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), ressaltou que é preciso “compreender melhor o que está em jogo na violência contra mulheres, negros e LGBTs” e a articulação das condições de gênero, raça e orientação sexual na cultura de agressão aos direitos humanos. Outro aspecto para o qual chamou a atenção foi a intersecção entre essa cultura violenta e o racismo institucional.
Estado e violência contra a mulher
A ouvidora Denise Dora apresentou ainda o histórico da constituição da noção de justiça e as influências religiosas que esta sempre teve. E destacou que a experiência brasileira que busca um mínimo de distribuição de justiça para toda a população tem no máximo 60 anos e que “a ideia de que há uma igualdade entre homens e mulheres na sociedade e dentro da família só vai ser explicitamente definida a partir da Constituição de 1988. Por isso, na minha opinião, o impacto da Constituição no Direito de Família e nas relações intrafamiliares ainda merece ser mais estudado por nós”.
“E é bom pensarmos não só como a Justiça opera ideologicamente em relação às noções de homem e mulher, mas também como ela se relaciona com as representações do que é o feminino e o masculino”, afirmou, lembrando que “todas as teorias que abordam a situação das mulheres ou do feminino no campo das relações de gênero, e recentemente as teorias Queer, têm mostrado que os gays ou as transexuais são espancados e mortos pelo que trazem de feminino em sua existência”.
Para Denise, é necessário enfrentar o desafio de reconhecer que, “na prática, temos ressignificado o conceito de violência contra as mulheres ou a ideia de violência de gênero, porque todo o debate sobre as ditaduras, o direito à memória, à verdade e à reparação nos levou a pensar como havia sido a perseguição e a violência do Estado contra o feminino, contra as mulheres. Sobre isso, a contribuição dos movimentos feministas brasileiro e latino-americano é fundamental porque recoloca questões que devemos pensar sobre a violência contra as mulheres”. Como exemplo desta relação, Denise Dora abordou como o crescimento do encarceramento feminino no mundo e no país tem trazido à tona o debate sobre o lugar da mulher nas cadeias de crime. “Uma instituição cujo código de conduta é pensado a partir da perspectiva masculina, que não tem, por exemplo, previsão orçamentária para compra de absorventes”, destacou.
A militarização dos territórios e a guerra aos pobres e negros
Vilma Reis, ouvidora-geral da Defensoria Pública do Estado da Bahia, ressaltou como o modelo de desenvolvimento e a militarização dos territórios também vêm afetando diretamente as mulheres negras. “Em relação à guerra às drogas, por exemplo, concordamos com Carl Hart, que é uma guerra aos pobres e negros. É por aí que queremos fazer o debate sobre o capitalismo.” Hart é psiquiatra e pesquisador da Universidade de Columbia (EUA), e esteve recentemente no Brasil para discutir a relação entre as políticas em vigor no combate ao uso de substâncias psicoativas, racismo e capitalismo.
“Nós, mulheres, quando os companheiros e filhos entram no sistema prisional ou no sistema de medidas socioeducativas, cumprimos a pena juntas, porque não abandonamos os nossos”, enfatizou Vilma. “Temos um sistema penal colonial atualizado, de vingança contra os negros e nós, mulheres negras. Contra nós, mulheres em geral. Um sistema de vingança, concordando com a socióloga Vera Malaguti, e de repressão à pobreza.”
A ouvidora da Defensoria baiana lembrou também a importância da intervenção das mulheres na 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública, em 2009. “Fizemos o debate sobre o que queríamos a partir da Lei Maria da Penha, com base no que lamentavelmente se tornaram as políticas que deveriam ter nos protegido, que se reduziram às Deams, e no que se tornaram as Deams no contexto do Estado brasileiro. Intervimos na 1ª Conseg porque se tem um lugar intransponível nesse debate é a segurança pública. E porque entendemos que negras e negros são criminalizados e denunciamos esse ato de sequestro e anulação das vozes das mulheres negras quando buscamos a justiça e somos vilipendiadas.” Ela destacou a experiência vivida pela ex-ouvidora da Defensoria no Estado da Bahia, Tânia Palma, durante a greve dos agentes da Polícia Militar em 2014. “Em 72 horas mataram 223 jovens entre Salvador e Feira de Santana. E Tânia foi com as mães para que elas reconhecessem, em uma pilha de cadáveres, qual era o filho delas”, afirmou. “É uma situação de tragédia!”.
Da mesma forma, defendeu Vilma, precisamos discutir “a dor das mulheres que vivem nas áreas militarizadas disputando territórios”, nas remoções nas grandes cidades e nas comunidades quilombolas. “E aí entra decisivamente a pauta das mulheres indígenas, com a situação covarde que está posta em Belo Monte”, afirmou.
Espaço reduzido para o debate sobre violência institucional contra mulheres negras
“Não existe feminismo para nós sem levar em consideração nossos filhos e nossas famílias. Dizemos isso há 20 anos, e é muito importante esse reconhecimento neste momento”, afirmou Magali Mendes. A promotora legal popular resgatava um debate havido na Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras rumo a Pequim, em junho de 1995 no Rio de Janeiro, quando o tema da violência institucional contra mulheres negras teve espaço muito reduzido na agenda de debates.
Dialogando com Magali, Vilma Reis lembrou o 12º Encontro Nacional Feminista, realizado em Salvador (BA) em 1997. “Para nós, um divisor de águas no diálogo entre os feminismos no Brasil”.
Vilma saudou ainda o esforço de síntese sobre a metáfora do acesso à justiça, “que para nós é algo muito concreto que se materializa no drama de cada mulher negra, de cada mulher nos bairros populares, de cada uma de nós”. E encerrou sua fala ressaltando que, “nesse esforço de síntese, esses debates são estruturantes porque estruturante é o racismo institucional, o sexismo institucional, o exercício aberto e vilipendioso da misoginia e do patriarcado de forma covarde grassando em nossa frente e tentando nos dizer que perdemos”.
Pequim+20 e os desafios futuros
Sob constante pressão e incidência do movimento feminista ao longo das duas últimas décadas, a Plataforma de Pequim no Brasil tem sido referência para a formulação de leis e implementação de políticas públicas. “Incontestavelmente houve avanços no país nos últimos 20 anos. Contudo, também se observam desafios significativos e importantes lacunas em diversas áreas prioritárias para a promoção dos direitos das mulheres e eliminação de discriminações e injustiças. É nesse contexto que o projeto Pequim+20, uma parceria do Instituto Patrícia Galvão com a ONU Mulheres e a Fundação Ford, foi concebido e está sendo realizado”, explica Jacira Melo, diretora executiva do Instituto.
A proposta do Painel foi dar um passo além dos diagnósticos sobre violência contra as mulheres. Assim, cada painelista e moderadora foi convidada a pensar, refletir e debater desafios para os próximos 5 a 10 anos.
Com esta matéria sobre o primeiro debate do Painel, que abordou de forma especial o impacto da violência sobre a vida das mulheres negras, a Agência Patrícia Galvão inicia a publicação da série Pequim+20: Acesso à justiça para mulheres em situação de violência.