(El País, 03/11/2015) Quando tinha apenas sete anos, Carla Tatiane Carvalho alisou o cabelo pela primeira vez. A sergipana de Aracajú cresceu rodeada de amigos que tinham madeixas lisas – geralmente por químicas – e sempre quis fazer o mesmo. “Não gostava do meu cabelo. A minha mãe também não sabia lidar com ele. Passava pente para desembaraçar e doía muito. Cresci com péssimas lembranças do meu cabelo natural”, conta. “Também não havia referência na televisão nem produtos voltados para o meu tipo de fio, crespo”, complementa.
Vinte e um anos se passaram e Carla já nem lembrava mais de como era o seu cabelo antes da química. Foi praticamente obrigada a recordar quando o último processo de alisamento que fez resultou no chamado “corte químico”: a quebra e queda dos fios. “Fiquei quase careca na parte da frente da cabeça”, lembra. Tentou remediar com aplique, mas a opacidade e o ressecamento dos fios que restaram ficaram impossíveis de disfarçar. Não teve outro jeito senão cortar tudo o que tinha alisamento e esperar o cabelo natural voltar a crescer.
Na mesma época, em 2013, se mudou para a capital paulista para dar aulas de história em uma escola pública. O contrato com o Governo do Estado de São Paulo, contudo, era temporário e, em fevereiro de 2014, não foi renovado. “Precisava urgentemente de uma fonte de renda. Pensei em abrir um negócio próprio”, explica. Da saga de descobrir tratamentos especiais para cachos que nasceu a ideia para a loja Meu cabelo natural, focada na venda de cosméticos livres de sulfatos, derivados de petróleos e de silicones insolúveis – componentes considerados vilões das adeptas de técnicas como o cowash (higienização com condicionador).
“Comecei a seguir essa técnica, pois fui descobrindo que era ideal para combater o ressecamento do meu cabelo, maltratado por anos de químicas de alisamento. Mas eu sentia muita dificuldade em encontrar nas prateleiras produtos liberados. Andava de loja em loja com uma listinha de substâncias que eu precisava evitar e lia todos os rótulos de cosméticos à venda”, afirma a empreendedora.
Como prega o ditado, há males que vêm para o bem. “Pensei como seria ótimo ter tudo o que eu precisava em um único lugar e assim nasceu a minha loja, pois na época ainda não tinha nenhuma outra especializada em tratamentos livres de sulfatos”, lembra.
A empresária começou vendendo produtos de marcas pequenas e pouco conhecidas, e hoje vende também os cobiçados produtos da Deva e da Lola Cosmetics. O objetivo é dar espaço para os pequenos empreendimentos, como o seu. Além de vender cosméticos e acessórios para cabelos cacheados e crespos, o site apresenta informações detalhadas de cada produto, como forma ideal de aplicação e componentes da fórmula. “O site hoje serve de referência para pessoas que querem saber se um cosmético é liberado para a técnica que ela segue”, afirma.
“Nos primeiros meses eu fazia tudo de casa, mas com o passar dos meses a necessidade de um espaço maior para estocar produtos me levou a alugar uma sala. Comigo, trabalham atualmente mais duas pessoas”, complementa. No ano que vem, a empresa terá que subir um degrau, passando do sistema tributário de Microempreendedor Individual (MEI) para Simples Nacional. “Estou quase me desenquadrando”, conta. O faturamento limite do MEI é de 60.000 reais por ano.
Para se diferenciar da crescente concorrência, Carla tem investido na diversificação de produtos. “Comecei a atuar com cosméticos naturais para todo o corpo, não só para os cabelos. As pessoas estão mais preocupadas com a sustentabilidade e a linha vegana vem ganhando fama entre os consumidores”, destaca.
A procura maior ainda tem sido por produtos de cabelo e o perfil da cliente da loja se assemelha com o da própria empreendedora. “São mulheres que estão largando da química em busca do cabelo natural”, conta. Carla, antes de assumir de vez os cachos, tinha uma relação bem conturbada com eles – assim como a maior parte das cacheadas do Brasil.
Para a empresária, o sucesso dos cabelos naturais provém de um movimento crescente de resgate histórico do país. “O cabelo crespo tem raízes no processo de miscigenação do nosso povo, procedente da escravidão do negro. O preconceito com o cabelo afro surge como um desdobramento do racismo, da não aceitação da nossa origem enquanto povo brasileiro”, conclui. Nesse sentido, a empresária acredita que o crescimento do mercado de beleza voltado para cabelos crespos contribui para mitigar o preconceito.
Beijinho no ombro
Infelizmente, exemplos de racismo não faltam no país. O caso mais recente, inclusive, ocorreu no último sábado, 31 de outubro. Foi quando a atriz Taís Araújo resolveu trocar a sua foto de perfil do Facebook, exibindo longos e volumosos cachos. Comentários como “me empresta seu cabelo para lavar louça” e “macaca” geraram revolta entre os internautas e denúncia dos criminosos (sim, racismo é crime) para a polícia do Rio de Janeiro, que investiga o caso. No dia seguinte a hashtag #SomosTodosTaisAraujo virou trending topic no Twitter e a atriz resolveu desabafar na internet.
“É muito chato, em 2015, ainda ter que falar sobre isso, mas não podemos nos calar (…) Agradeço aos milhares que vieram dar apoio, denunciaram comigo esses perfis e mostraram ao mundo que qualquer forma de preconceito é cafona e criminosa. E quero que esse episódio sirva de exemplo: sempre que você encontrar qualquer forma de discriminação, denuncie. Não se cale, mostre que você não tem vergonha de ser o que é e continue incomodando os covardes. Só assim vamos construir um Brasil mais civilizado”, publicou Araújo em seu perfil no Facebook.
O triste episódio ocorreu poucos meses depois de outra personalidade da TV Globo, a jornalista Maria Júlia Coutinho (Maju) ter sido alvo de racismo pelas redes sociais. Maju assumiu, em abril deste ano, o posto de garota do tempo do Jornal Nacional. Na página do Facebook do jornal ancorado por William Bonner, comentários racistas como “Só conseguiu emprego no JN por causa das cotas” e “Em pleno século 2015 (sic) ainda temos preto na TV” chocaram os internautas, que se lançaram na campanha #SomosTodosMaju.
Como se não bastasse toda a repercussão do episódio, mais uma vez ele ocorreu. Desta vez, em julho. Um seguidor resolveu fazer um comentário racista no Twitter da jornalista. Maju desarmou o internauta com um simples “beijinho no ombro”.
Ana Carolina Cortez
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