(UOL/Blog do Sakamoto, 04/11/2015) Homens que possuem espaço na mídia foram instigados a ficarem como espectadores nesta semana, ao invés de escreverem e publicarem textos sobre os direitos das mulheres e questões de gênero. Ou seja, promoverem uma ocupação de seu espaço para que elas falassem por si. Portanto, de segunda a domingo (8), mulheres de diferentes origens, histórias e regiões estão publicando, neste blog, sobre o tema dentro da iniciativa #AgoraÉQueSãoElas.
Este texto é da jornalista e escritora Laura Capriglione, uma das fundadoras dos Jornalistas Livres, exclusivo para o blog.
Os outros já publicados nesta série são: Segunda (2) – Juliana de Faria e Luíse Bello, do Think Olga, responsável pela campanha #primeiroassedio; Terça (3) – Karina Buhr, cantora, compositora, atriz e ativista; Quarta (4) – Djamila Ribeiro, filósofa e feminista.
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Vão morrer mais mulheres negras e pobres. E a culpa será do Congresso, Laura Capriglione, jornalista e escritora
As inspiradoras (e em grande medida surpreendentes) mobilizações dos últimos dias contra o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e seu projeto de lei 5069/2013, que visa dificultar o aborto legal em casos de estupro, evidenciam o surgimento de um novo tipo de feminismo. Trata-se de um feminismo que tem como ponto de partida o compartilhamento generalizado de experiências individuais dolorosas. Milhares de testemunhos agora públicos sobre o #PrimeiroAssédio permitiram a cada menina/jovem/mulher entender que pertence a uma parte da humanidade tratada como presa de outra parte, dos caçadores.
E, de repente, houve uma coagulação de solidões em um “nós” comum – uma menina juntando-se a outra e mais a outra. E a uma feminista histórica que nunca falou de seu próprio sofrimento, conquanto soubesse de cor a fala de Simone de Beauvoir que caiu no Enem.
Essas mulheres não tolerariam que mais um boçal como Eduardo Cunha viesse tocar em seus corpos, como tantas outras vezes ocorreu.
A constituição desse “Nós, Mulheres!” (aliás, nome de um jornal feminista dos anos 1970), grávido de esperanças em uma humanidade mais gentil e igualitária, entretanto, precisa reconhecer que milhões de integrantes desse imenso coletivo demarcado pelo gênero foram mais “caçadas” do que as demais.
Refiro-me especificamente às mulheres negras, à descendência dos homens e mulheres que foram por lei despojados de sua humanidade, oficialmente animalizados, carimbados como bens móveis, durante quase 400 anos!
Lembra Angela Davis, militante dos Panteras Negras, em seu “Mulheres, Raça e Classe”, de 1983, que os castigos impostos às escravas excediam em intensidade os sofridos pelos escravos, “porque as mulheres não eram apenas chicoteadas e mutiladas; elas eram também violadas”.
O dano colateral de uma tal violência generalizada foi a naturalização e, quando não, sua justificação na literatura tradicional sobre a escravatura. “O dono Henry Bibb forçou uma rapariga escrava a ser a concubina do seu filho; o capataz M. F. Jamison violou uma bonita rapariga escrava; e o dono Solomon Northrup forçou uma escrava ‘Patsy’ a ser sua parceira sexual.”
Está em um dos testemunhos na rede sobre o #PrimeiroAssédio: “Ele queria me convencer de que eu queria aquilo. Que eu gostava daquilo. Que ele estava errado em fazer aquilo comigo, mas que eu era muito mais errada, por consentir. E eu tinha apenas nove anos!”
Com as mulheres negras, abusadas durante a escravidão e depois nas mini-senzalas dos quartinhos de empregada, tentou-se o mesmo método de culpabilização da vítima. Elas seriam muito fogosas, “quentes”, sexualizadas. Segundo Angela Davis, “apesar do testemunho dos escravos sobre a alta incidência de violação e coação sexual, a questão do abuso foi tudo, menos posta a descoberto pela literatura tradicional (masculina, por excelência) sobre a escravatura; algumas vezes até foi assumido que as mulheres escravas acolhiam e encorajavam as atenções sexuais dos homens brancos.”
Isso ficou para trás?
Não.
Em março de 2010, durante audiência pública no STF sobre as cotas raciais nas universidades públicas , o então deputado federal pelo DEM, Demóstenes Torres, um antagonista das cotas, declarou, com o propósito de “demonstrar” a corresponsabilidade de negros no sistema escravista brasileiro: “Nós temos uma história tão bonita de miscigenação… [Fala-se que] as negras foram estupradas no Brasil. [Fala-se que] a miscigenação deu-se no Brasil pelo estupro. [Fala-se que] foi algo forçado. Gilberto Freyre, que é hoje renegado, mostra que isso se deu de forma muito mais consensual”.
Culpa delas. Cotas, reparação, por quê?
Não é preciso facilitar o aborto legal em casos de estupro apenas porque é cruel demais, sádico demais, forçar as vítimas a se tornarem mães dos filhos de seus agressores. Em último caso, as mulheres de classes mais abonadas, brancas em sua maioria, podem recorrer a um médico ou clínica particular, como sempre fizeram neste país de moral seletiva. Para as mulheres negras, moradoras nas periferias dos grandes centros urbanos, a vida é bem diferente. O aborto legal, feito pelo SUS em condições de segurança sanitária e com apoio psicológico, é uma exigência da civilização contra a barbárie que naturaliza a violência e culpa a vítima.
Como lembrava Angela Davis, para as mulheres negras e pobres, “a luta pelo direito ao aborto deriva da exigência de se realizar em segurança o aborto, não porque não se deseja ser mãe, mas porque não se tem condições de sê-lo”.
No ato público realizado em São Paulo, entrevistei uma jovem negra, Fernanda, de 20 anos, moradora na zona leste, que dizia o mesmo. “Estou participando porque acho que o PL5069 vai condenar à morte as mulheres da periferia onde eu moro. Prejudicará muito mais as mulheres negras, pobres e da periferia porque temos menos condições de pagar por um aborto seguro. Estupradas, as moradoras da periferia serão condenadas a fazer aborto clandestino em condições muito mais inseguras. Serão mais mortes na periferia.”
Angela Davis e Fernanda não podem ser esquecidas, se a luta é pra valer.
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