(Brasil Post, 08/11/2015) Post em apoio ao #AgoraÉQueSãoElas, por Natália Pollachi, coordenadora de projetos do Instituto Sou da Paz.
Vivemos dias contraditórios. É de se comemorar haver milhares de mulheres protestando nas ruas e que questões de gênero tenham ganhado espaço nas discussões diárias, mas é de certa forma frustrante que boa parte dessa energia incrível esteja sendo dispendida não para a conquista de novos direitos essenciais, mas, principalmente, para que não retrocedamos.
Falamos dos primeiros assédios verbais e físicos, de estupro e aborto. Isso é essencial e precisamos falar ainda mais. No entanto, outro tema importante nos graus mais elevados de violência ainda está fora deste debate, apesar de estar igualmente sob ameaça de retrocesso. Falo da lei nacional de controle de armas.
A bancada da bala quer facilitar a aquisição de armas de fogo e voltar a permitir o porte de arma nas ruas a civis por meio do Projeto de Lei 3722/2012, que já foi aprovado em uma Comissão Especial da Câmara e segue para o Plenário. Este projeto retira exigências como a de não estar respondendo a processo na Justiça, rebaixa a idade mínima para 21 anos, permite a regularização de armas ilegais a qualquer momento e retira a necessidade de renovar o registro de posse, uma vez concedido, seria para sempre.
Há inúmeros estudos sobre os impactos que este projeto pode gerar ao reverter um dos nossos principais avanços civilizacionais e um dos poucos na área da segurança pública a ser comemorado no nosso país. Uma conquista de 2003 decorrente de massiva mobilização civil e decisiva para estancar o crescimento de homicídios e salvar cerca de 160 mil vidas . Mas vamos usar este espaço para falar especificamente da ótica feminina, praticamente ausente neste debate.
Por razões que merecem um artigo à parte, dos 27 titulares da Comissão Especial, apenas duas eram mulheres. Suas participações e pontuações sobre a ótica feminina foram ofuscadas durante o processo. Quando a Comissão se referiu às mulheres usou dois padrões: exemplo de fragilidade que justificaria a necessidade de portar uma arma para se defender e, principalmente, como parte da família que o cidadão de bem armado precisa proteger.
O discurso geral de necessidade para defesa é falho uma vez que pesquisas já provaram que armas de fogo não são bons instrumentos de defesa, quem reage armado tem 56% mais chance de ser vítima letal. Como muito vem sendo escrito sobre a constante responsabilização da mulher de se defender ao invés de investir na elaboração de políticas públicas que protejam com prevenção, dedico este espaço ao segundo argumento, o ideal do “cidadão de bem”.
Entremos por um momento na fantasia defendida pelos armamentistas de que flexibilizar os requisitos para compra legal não facilitará que criminosos contumazes obtenham armas com mais facilidade por meio de proprietários que as desviem ou sejam roubados . O que define um “cidadão de bem”, segundo a versão atual do projeto, é: tem 21 anos ou mais, renda e residência fixa, passou em um teste de tiro e em uma entrevista psicológica e não foi condenado por nenhum crime doloso. Apenas.
A cada duas horas, uma brasileira é morta decorrente da violência. A cada hora, 8 mulheres dão entrada em hospitais por agressões físicas e sexuais. A Central de Atendimento à Mulher recebeu em 2015 uma média de 2.000 ligações com relatos de violência todos os dias. Sabendo que a notificação nesse tipo de crime é minoritária, podemos multiplicar esses números já absurdos algumas vezes para nos aproximar da realidade.
Considerando que a maioria das agressões se dá por conhecidos antes detentores de confiança, acredito que seja mais fácil para mulheres percebem o quanto esta expressão “cidadão de bem” é vazia e volátil. Quantos deles não cumpririam os requisitos acima em algum momento de suas vidas?
Pela predominância de 72% das agressões ocorrerem em suas casas, as mulheres representam apenas 6% das mortes por armas de fogo no País. Ainda assim, metade das vezes em que a agressão contra uma mulher resultou em morte ela foi decorrente do uso de arma de fogo. A presença de uma arma em conflitos interpessoais potencializa o evento porque é um instrumento que favorece a ação impulsiva e é muito mais eficiente.
Ainda que a indústria de armas financie deputados que disseminam o medo e invista em pistolas cor-de-rosa-barbie, a demanda por armas segundo estudo do IPEA é ao menos oito vezes maior entre homens do que entre mulheres.
Deveríamos estar avançando para garantir, por exemplo, que entre as medidas cautelares previstas na Lei Maria da Penha após a denúncia fosse incluída a verificação de registro e apreensão preventiva de armas da residência. Mas o texto aprovado na Comissão Especial da Câmara vai no caminho contrário: nenhuma denúncia, investigação, prisão em flagrante ou mesmo processo judicial por violência doméstica seria suficiente para impedir alguém de comprar legalmente uma arma, como a que feriu permanentemente a própria Maria da Penha, vítima que dá nome à Lei.
Não é banal mencionar que esse discurso reforça o estereótipo mais arcaico do homem provedor e da mulher como vulnerável dependente. Faltam dados sobre o uso de armas na violência em outros graus, como nos assédios e ameaças. Armas não precisam ser disparadas para causar efeitos perversos. Pensando apenas no local que deveria ser o mais seguro, nas famílias as ameaças que constantemente já usam aspectos econômicos e reputacionais passarão a contar com mais este elemento mesmo que de forma velada, como silencioso ato de limpar a arma na mesa da cozinha depois de uma discussão, ou mesmo mantê-la permanentemente em local visível.
“Que as mulheres também se armem, defendemos a igualdade!”, responderão os armamentistas. Ainda que seja verdade, a quem interessa essa sociedade que usa armas de fogo como equalizadores, além de à indústria de armas e seus acionistas? Regrediremos a um faroeste que, ao invés de investir em uma polícia eficiente e prevenção, abandonaremos cada um à própria sorte com uma arma nas mãos para viver sob a ameaça de quem será o mais veloz para sacar.
Estes deputados da bancada da bala desmontam uma das funções fundamentais do Estado, garantir proteção, com o discurso de que o Estado não pode interferir na liberdade de escolha do mítico cidadão “de bem” de ter ou não uma arma.
Mas é curioso como muitos destes deputados também integram a chamada bancada “da bíblia” que promove retrocessos sociais extremamente invasivos da esfera privada, como a definição pelo Estado de que tipo de relação amorosa é ou não aceitável e do que consiste ou não uma família. Ou seja, o discurso da liberdade individual só vale quando é conveniente.
Bradam que “estão atendendo ao apelo do povo” com base em enquetes voluntárias e redes sociais, mas pesquisas representativas do Datafolha mostram que 62% da população é contra a posse de armas por civis. Clamam que é preciso mudar porque sob a lei atual seria impossível adquirir uma arma, ainda que sob esta lei já foram emitidos segundo a Polícia Federal (via LAI) mais de 120 mil registros para defesa pessoal, com o número de registros subindo ano após ano.
Não há fio lógico. A volta do descontrole das armas de fogo é mais uma ameaça real baseada em interesses pessoais e eleitoreiros que negligenciam a deliberação em prol do País e atendem a impulsos retrógrados baseados em discursos de ódio, de justiça pelas próprias mãos e de manutenção de espaços específicos de controle social. Que não se enganem, o controle de armas também se refere a nós mulheres e é mais uma luta em que viemos para ficar.
Acesse no site de origem: #AgoraÉQueSãoElas: O Estatuto do Desarmamento sob a ótica feminina, por Natália Pollachi (Brasil Post, 08/11/2015)