(Géssica Brandino/Agência Patrícia Galvão, 01/12/2015) A presença das mulheres no mercado de trabalho tem aumentado de forma contínua nas últimas décadas. Entretanto, é sobre elas que recai o trabalho doméstico e as tarefas de cuidado, e mesmo com mais anos de estudo e exercendo as mesmas funções elas ainda ganham menos do que os homens. Para as mulheres negras, a essa conta também se soma o racismo, que faz com que tenham ainda mais dificuldade de acessar o mercado formal, quando comparadas às mulheres brancas.
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Tais desafios foram pautados na mesa de abertura do Painel Pequim+20: Promover o acesso das mulheres a empregos de qualidade em contexto de crise econômica, promovido pelo Instituto Patrícia Galvão, ONU Mulheres e Fundação Ford. Realizado no dia 22 de outubro, o evento reuniu especialistas de diferentes estados que apontaram direções para superar dificuldades novas e estruturais no mercado de trabalho, no ano em que a Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Pequim, na China, completa 20 anos.
A representante da ONU Mulheres no Brasil, Nadine Gasman, destacou que, nos últimos 13 anos, políticas como o aumento do salário mínimo, o Bolsa Família e o Minha Casa, Minha Vida fizeram diferença na vida das mulheres, reduzindo a desigualdade no país. Nadine também falou do papel da ONU Mulheres e da necessidade de transformações nas economias para que os direitos das mulheres sejam efetivados. O relatório de 2015 da organização tem como foco o avanço das economias no mundo e a necessidade de promover mudanças para conquistar direitos.
“Para a ONU Mulheres, é urgente a mudança de rumo na economia mundial para que as mulheres tenham acesso igualitário aos recursos produtivos, como emprego de qualidade, crédito, tecnologia, propriedade e proteção social, inclusive no emprego. A economia deve garantir que as mulheres tenham condições suficientes para uma vida digna.”
A diretora executiva do Instituto Patrícia Galvão, Jacira Melo, falou sobre a importância da Plataforma de Pequim na formulação de leis e programas que permitiram avanços incontestáveis ao longo de 20 anos. “A Plataforma de Pequim tornou-se referência para os mais de 180 países signatários, entre eles o Brasil, ao orientar ações para a promoção da igualdade de gênero e eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres. Foi e continua sendo um documento de referência.”
Jacira também apresentou dados da pesquisa “Trabalho remunerado e trabalho doméstico – uma tensão permanente”, realizada em 2012 pelo Data Popular, SOS Corpo e Instituto Patrícia Galvão. O estudo mostra que 91% das mulheres consideram o trabalho remunerado fundamental e 73% acumulam a realização de tarefas domésticas nas próprias casas; dessas, 71% não contam com a ajuda do parceiro. Além disso, a pesquisa também aponta que conseguir uma vaga em creche é uma das principais dificuldades encontradas por mulheres que trabalham, de diferentes classes sociais.
Mercado de trabalho A coordenadora executiva do DIEESE, Patrícia Pelatieri, apresentou dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE que mostram a entrada de 6 milhões de mulheres no mercado de trabalho formal entre 2004 e 2013, acompanhada pela queda do desemprego feminino, que passou de 11,5% para 8,4%.
“É verdade que a presença feminina foi beneficiada por uma política econômica internacional favorável, que proporcionou o crescimento brasileiro, mas os avanços foram possíveis devido a opções políticas feitas a partir de 2003. A política favorável ao emprego, mercado interno e formalização fortaleceu a negociação coletiva, que trouxe para os assalariados um ganho significativo na redução das desigualdades”, ressaltou Patrícia. Um exemplo citado pela coordenadora do DIEESE foi o Programa Microempreendedor Individual, que possibilitou trazer para a formalidade 2 milhões de mulheres, conforme dados do Portal do Microempreendedor. Também houve um aumento da presença de mulheres em cargos de direção, que passou de 41,3% para 45,5%, segundo a RAIS do Ministério do Trabalho e Emprego. Entretanto, a diferença salarial entre dirigentes homens e mulheres apresentou pequena redução e elas seguem ganhando menos. Índice de trabalho decente A partir de indicadores da PNAD dos últimos 20 anos, a socióloga Felícia Silva Picanço, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), desenvolveu o indicador do Índice do trabalho decente, com base no conceito estabelecido pela Organização Internacional do Trabalho.
Felícia compilou os dados por segmentos de ocupação que mostram que, em relação ao emprego doméstico, houve redução do acesso ao trabalho decente devido ao processo de diarização, pois muitas mulheres passaram a trabalhar como diaristas para elevar sua remuneração. O indicador mostra ainda que anos de estudo, deslocamento entre casa e trabalho, cor, idade e o fato de viver em zonas urbanas são os principais fatores que pesam para que as mulheres tenham trabalhos decentes. Felícia frisou que “o processo de interpenetração dos sexos nas ocupações tipicamente masculinas ou femininas incide diretamente na queda da segregação. Esse é um dos grandes elementos para se pensar na inserção das mulheres em um contexto de crise”.
As variáveis também evidenciam a influência do desenvolvimento urbano na aquisição de bons empregos. “A mobilidade territorial e as condições de vida chamam atenção porque dizem respeito não só à circulação na cidade, mas também à equidade na distribuição de bons empregos. Para buscar melhores trabalhos, as mulheres precisam se deslocar mais e para isso precisam de suporte para cuidar de suas famílias.”
Mulheres negras
Felícia também destacou que o fator raça/cor pesa mais para as mulheres do que para os homens no acesso a bons empregos. Nessa direção, a representante da ONU Mulheres, Nadine Gasman, fez referência à pesquisa Ethos de 2010, que aponta para a disparidade nas condições enfrentadas pelas mulheres negras no mercado de trabalho. Os dados revelam que as negras recebem metade da remuneração das brancas e 300% menos do que um homem branco. Ao mesmo tempo, as mulheres negras respondem por 70% das famílias com renda de até um salário mínimo, chefiam 51% dessas famílias e permanecem longe dos cargos de liderança: representam somente 1,5% do grupo dos executivos do Brasil.
Diante dessa realidade, as 70 empresas que aderiram ao Pacto pela igualdade das mulheres, proposto pela ONU Mulheres no Brasil, receberam como desafio combater o racismo no ambiente institucional. “Com maioria da população negra, o Brasil tem o desafio de acelerar a igualdade de gênero de forma articulada com a dimensão racial. Sem isso será impossível avançar”, alertou Nadine, destacando “a perversa sistemática presente na vida das mulheres negras, que ocupam a base da pirâmide socioeconômica e politica do país”.
Cenário de crise
A economista do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp/SP, Marilane Teixeira, problematizou que, apesar do avanço na inserção feminina no mercado formal de trabalho, ainda há 35 milhões de mulheres em idade ativa que não estão inseridas.
“A dinâmica de inserção das mulheres no mundo do trabalho não se dá pelo próprio mercado. Há um componente fundamental que é a formulação de políticas públicas que contribuem e interferem nessa forma de inserção”, destacou a pesquisadora, lembrando que “é a inserção na estrutura reprodutiva que determina a forma como as mulheres se inserem na estrutura produtiva”.
Marilane citou o avanço nas negociações pela implementação da licença maternidade ampliada de 180 dias e a luta dos movimentos sindicais pelo aumento da licença paternidade e pelo acesso à creche. “Do ponto de vista das tarefas e responsabilidades familiares, há uma sobrecarga que ainda recai sobre as mulheres. Essa dificuldade determina uma forma de inserção em que as mulheres vão buscar empregos em que o deslocamento é menor.”
A coordenadora do DIEESE, Patrícia Pelatieri, alertou que no contexto de crise há uma investida contra os direitos dos trabalhadores, com uma forte tentativa de desregulamentação total do mercado de trabalho. E Marilane acrescentou que as mulheres não são as mais afetadas pelo processo de terceirização, porque a maioria está no mercado informal, como é o caso do setor têxtil.
A socióloga e professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Moema de Castro Guedes, também destaca a existência do custo de oportunidade em estar ou não empregada, que afeta principalmente as mulheres com menos escolaridade e salários mais baixos. “Em um cenário em que o desemprego aumenta, além de serem mais pressionadas por estarem em cargos mais vulneráveis, elas podem optar por sair do mercado de trabalho, coisa que a mulher que está no topo não faz porque o salário dela é muito mais alto.”
Desconstrução de papéis de gênero
Moema frisou que, apesar de a figura do homem como provedor da família estar em franca desconstrução – conforme mostram dados do Ipea, que indicam que 40% da renda familiar é gerada pelo trabalho feminino -, a imagem das mulheres como únicas cuidadoras não está em desconstrução na mesma intensidade e velocidade, o que causa um descompasso.
A socióloga destacou como ainda é pouco estudado o fato de que as políticas impactam de formas diferentes homens e mulheres. “Para elas, a diminuição de uma hora na escola faz total diferença e é prejudicial, porque repercute na dinâmica que vai ter com o mercado de trabalho. O debate às vezes é muito circunscrito às crianças, mas com o envelhecimento da população precisamos considerar o peso dos idosos e a necessidade de novos arranjos, para o Estado, família e mercado”.
Felícia ressaltou que é preciso pensar nas representações de gênero desde a infância, chamando atenção para a divisão de tarefas e para a ampliação das escolhas profissionais.
“Ampliar o horizonte das representações de gênero significa modificar o olhar sobre as possibilidade de inserção das mulheres na vida reprodutiva, dentro e fora do mercado de trabalho. Esse é um ponto em que não amadurecemos em termos de demanda”, avalia.
Outro ponto que precisa ser estudado e discutido, na visão de Marilane Teixeira, é o ambiente de trabalho das mulheres, onde são reproduzidos estereótipos de gênero e também atos de violência. “Há um uso impressionante da sexualidade como elemento de opressão dentro do ambiente de trabalho. Elas são agredidas e assediadas moralmente através da questão sexual. Há casos de mulheres que são obrigadas a desfilar de lingerie caso não cumpram as metas, além de rifas de uma noite com elas”.