(Géssica Brandino/Agência Patrícia Galvão, 18/11/2015) Vinte anos após a Conferência Mundial da Mulher em Pequim, garantir o compartilhamento das tarefas domésticas com os homens permanece um desafio. A divisão sexual do trabalho afeta diretamente o acesso das mulheres ao mercado de trabalho e a outras oportunidades de desenvolvimento individual. Quando podem, elas delegam tarefas a outras mulheres, as trabalhadoras domésticas, que por sua vez também sofrem com a ausência de políticas públicas voltadas ao cuidado.
O debate sobre tais questões ocorreu no Painel Pequim+20: Promover o acesso das mulheres a empregos de qualidade em contexto de crise econômica, promovido pelo Instituto Patrícia Galvão, ONU Mulheres e Fundação Ford. Realizado no dia 22 de outubro, o evento reuniu especialistas de diferentes estados.
Leia mais: Creches para as calendas, editorial da Folha de S. Paulo (Folha de S. Paulo, 23/11/2015)
Acesso a creche
A secretária de Políticas do Trabalho e Autonomia Econômica das Mulheres do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, Tatau Godinho, destaca que são as mulheres as principais interlocutoras em atividades vinculadas a políticas públicas e que a política de creche e educação infantil, de responsabilidade dos municípios, é o principal gargalo vinculado à questão da divisão sexual do trabalho e às possibilidades de emprego para as mulheres. “Se as mulheres têm filhos em creche, elas estão no mercado de trabalho. Se não há políticas de cuidado, o acesso das mulheres ao trabalho se inviabiliza.”
De acordo a Síntese de Indicadores Sociais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2002 a 2012 o percentual de crianças de até três anos de idade atendidas em creche passou de 11,7% para 21,2%. O acesso à política também é desigual. Em 2012, 63% das crianças entre 2 e 3 anos da população mais rica do país frequentava creche, enquanto o acesso da parcela mais pobre era de 21,9%.
“Estamos falando das crianças negras, são elas que menos têm acesso à creche. Os cortes renda, classe e raça/etnia são extremamente fortes, portanto as políticas que vão nesse viés melhoram a qualidade das mulheres e crianças pobres”, reforça Tatau.
Divisão sexual do trabalho
A secretária Tatau Godinho falou ainda da dificuldade em manter a jornada integral das creches, uma vez que isso requer dar conta de direitos e deveres concorrentes, das mulheres e dos profissionais que atuam nos serviços. “Quando falamos em repensar as políticas públicas, temos que considerar que o tempo do cuidado exige horários fixos. A criança tem horários certos para ir e voltar para a escola e também o idoso para tomar o remédio. É incompatível uma sociedade com jornadas de trabalho fixas em um mundo público e com as necessidades que temos no privado.”
O sociólogo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Alexandre Fraga, aponta que as mulheres continuam com o peso da dupla jornada de trabalho. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2013, 88% das brasileiras acumulam tarefas domésticas e trabalho remunerado. Entre os homens, esse número cai quase pela metade (46%).
“É clara a lentidão na participação dos homens no trabalho doméstico. É nesse espaço em que há uma maior resistência à igualdade de gênero. A relutância dos homens em participar dos afazeres resulta em obstáculos maiores vivenciados pelas mulheres na forma de carreiras descontínuas, salários mais baixos e jornada parcial”, aponta Alexandre.
O especialista explica que, entre os homens que dividem o trabalho doméstico, a presença é marcante em atividades de mediação da família com a esfera pública, como levar para a escola, fazer compras e brincar com os filhos, e é muito pequena ou insignificante em atividades que implicam um trabalho rotineiro, manual e solitário, como lavar a louça e a roupa, o que evidencia a existência da divisão sexual do trabalho doméstico. Mudar esse cenário depende da formação desde a infância.
“O desafio de incluir os homens nos trabalhos domésticos passa por uma discussão de gênero que vem desde a educação básica, mas há um ataque de diversos setores ao ensino de gênero nas escolas. Temos que ficar de olho e não permitir que esses setores consigam tirar a discussão da educação básica.”
Tatau afirma que o governo federal planeja realizar até 2015 uma pesquisa nacional sobre o uso do tempo para “fazer com que a sociedade absorva que o trabalho reprodutivo e cotidiano tem que ser uma tarefa da sociedade como um todo”.
Realidade das trabalhadoras domésticas
Ao invés da divisão do trabalho dentro de casa, famílias com maior renda optam por terceirizar o trabalho doméstico para outra mulher. De acordo com a última Pesquisa de Orçamento Familiar, de 2008/2009, cerca de 10 milhões das famílias brasileiras tinham gastos com serviços domésticos, o que equivale a 17,5%. Alexandre Fraga chama atenção para o fato de 94% dos trabalhadores domésticos do país serem mulheres de baixa renda, a maioria negra. “A cada quatro mulheres negras ou pardas ocupadas, uma era doméstica em 2009”, frisa.
Em 2013, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgou uma pesquisa sobre a realidade do trabalho doméstico em 117 países. Segundo o estudo, há no mundo 52,6 milhões de trabalhadores domésticos, 3,5 da população mundial ocupada, o que equivale dizer que 1 em cada 13 trabalhadoras assalariadas no mundo é empregada doméstica.
Diante de tal cenário, Alexandre coloca a formalização como desafio, uma vez que apenas 10% de todos os trabalhadores domésticos estão cobertas por legislação trabalhista, 40% não têm garantido o direito a licença maternidade e 30% estão em uma situação de trabalho totalmente informal, sem a garantia de qualquer direito. Essa realidade também está presente no país, aponta o especialista.
“Com apenas 30% das trabalhadoras domésticas do país com carteira assinada, a maioria permanece sem direitos. O desafio é como levar as mulheres ao pólo mais valorizado e bem remunerado, sem criar um pólo precário. No caso das diaristas, que estão em ascensão, elas são autônomas e não pagam a previdência, e é preciso uma estratégia ou teremos uma grande quantidade de mulheres sem direitos na velhice.”
Participação das mulheres negras
Outro ponto levantado no debate foi o papel das empresas na garantia de políticas de igualdade de gênero e na participação das mulheres negras nas esferas decisivas. A diretora executiva do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), Cida Bento, defende que as empresas multinacionais sejam questionadas a partir do código de conduta sobre programas voltados para a igualdade de gênero que realizam em outros países, mas não são desenvolvidos no Brasil.
Cida aponta a necessidade de participação das mulheres nos programas, garantindo o recorte racial, uma vez que a definição de prioridades entre brancas e negras é diferente. “Por mais sensíveis que sejam os homens, os programas de gênero têm que ter mulheres. E por mais sensíveis que sejam as brancas, é preciso que haja mulheres negras para definir prioridades. Quando estamos na universidade, no poder público ou nas empresas e viramos para os lados e só vemos pessoas brancas, precisamos falar sobre isso.”
A especialista avalia que a dificuldade que as mulheres negras enfrentam no mercado de trabalho está relacionada à ausência delas nos lugares de poder e também na academia. “No desenvolvimento de um projeto o recorte de raça por vezes não entra, porque a mulher negra não está lá. Provoco nós, mulheres negras, a pensar por que não estamos conseguindo fazer uma agenda contundente e nós, mulheres brancas, para saber por que a gente silencia.”