(Luciana Araújo/Agência Patrícia Galvão, 07/12/2015) A Agência Patrícia Galvão entrevistou a socióloga Vilma Reis, ouvidora-geral da Defensoria Pública do Estado da Bahia, durante o Painel Pequim+20: Acesso integral à justiça para mulheres em situação de violência. No ano em que a Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Pequim, China, completa 20 anos, o Instituto Patrícia Galvão, ONU Mulheres e Fundação Ford promoveram o Painel Pequim+20, que reuniu especialistas no tema para debater os avanços nas duas últimas décadas e os desafios que permanecem.
A relação de Vilma com a Defensoria baiana vem desde antes da implantação do órgão, em 2009. Vilma Reis integrou o primeiro Conselho Consultivo da assistência judiciária. Feminista de longa data, coordenou o Fórum de Mulheres de Salvador entre 1996 e 1999, integrou a Comissão Organizadora do 12º Encontro Nacional Feminista, ocorrido em 1997 também na capital soteropolitana, e também atuou na construção do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres de 2011. Mestra em Ciências Sociais, é doutoranda do Programa Multidisciplinar em Estudos Étnicos e Africanos – PosAfro, da Universidade Federal da Bahia.
Muitas vezes a violência contra jovens negros é percebida como uma violência colateral contra a mulher negra, e não como uma violação direta a essas mulheres. Gostaria que você falasse sobre isso, sobre a violência de viver na perspectiva cotidiana da perda de um filho ou irmão.
O que nós do movimento de mulheres negras temos dito é que estamos falando de algo que está acontecendo em nosso próprio corpo.
Consideramos que é uma atitude covarde do Estado essa acusação continuada de que a violência acontece porque não cuidamos bem de nossas famílias. Até porque a única dignidade que nossas famílias têm é fruto do que podemos dar, porque o Estado em geral quase nada oferece do que deveria ser devolvido enquanto serviço.
E afirmamos mais. A guerra às drogas, por exemplo, é na verdade uma manifestação violenta do biopoder de um Estado que acha que nós, 52% do país (mulheres negras, homens negros, juventude, infância e velhice negras) não deveríamos existir. Esse é o entendimento do Estado, inclusive, lamentavelmente, em uma faixa bem ampla da esquerda, que sempre se trai nas suas propagandas, porque ainda nos coloca como beneficiários das políticas e não como sujeitos políticos que pensam política e o projeto de Nação.
As políticas conquistadas pela população negra são sempre apontadas como benesses e não como ações reparatórias…
Exatamente! Não é benesse, favor e nem caridade. Lutamos para que essas políticas existissem. E esse é o potencial revolucionário que levamos com a Marcha das Mulheres Negras e quando dizemos: ‘vamos adentrar as ouvidorias das Defensorias Públicas, porque não vamos dormir com os olhos dos outros, vamos lá fazer’. Por isso, quando clamamos que todo mundo precisa se manifestar pela eleição de Lúcia Xavier [médica e ativista do movimento de mulheres negras, que concorre ao cargo no Rio de Janeiro] é porque sabemos que há anos ela já é uma ouvidora, uma mulher que faz provocações sobre o que deve ser a participação política e o controle social. O foco não é personalista, mas de ação coordenada em um país de dimensões continentais, eivado por uma mentalidade conservadora e patriarcal. Um país onde as regras da colonização, aquilo que chamamos nos estudos das ciências sociais diaspóricas de “colonialidade”, estão absolutamente vivas, porque são as regras da escravização atualizadas.
Ainda mais em um Estado como o Rio de Janeiro…
Sim, em um Estado como o Rio, em um Estado como o meu, a Bahia, extremamente violento, marcado por dinastias políticas, que fez a transição do jagunço da fazenda para o jagunço da televisão, que faz programas de TV que são verdadeiros derramamentos de sangue ao meio-dia, explodindo nas mesas das famílias negras. E é essa população que está extremamente vulnerável a esse tipo de conteúdo. Nossa posição é política e não estamos pedindo nada, estamos colocando uma pauta sobre a mesa, 20 anos depois de Pequim. Na perspectiva das tentativas de construção de sínteses que colocamos no processo de Pequim e que apontamos para os próximos 20 anos, é decisivo e estruturante para nós enfrentarmos o racismo porque aí está colocada a possibilidade de continuarmos a existir enquanto povo ou não.
Durante o Painel Pequim+20 você mencionou os estudos da decolonialidade e também comentou o impacto da atualização dos modelos de desenvolvimento sobre nós, população negra. Fale mais sobre como o modelo atual de desenvolvimento de políticas de segurança como as UPPs, reorganização dos espaços urbanos e desenvolvimento das cidades afeta os negros no Brasil.
Sim, vivemos um momento de criminalização da pobreza e militarização dos nossos territórios, o que nos faz questionar uma série de alianças que construímos nos últimos 35 anos, inclusive no campo à esquerda, com a gente empurrando a esquerda para a esquerda. Isso desde a criação do Partido dos Trabalhadores, lá no início dos anos 1980, porque com os outros partidos que eram considerados de esquerda não havia nem espaço de diálogo.
Mas olhar sobre essa experiência dos últimos 35 anos, não só da tentativa de Lélia Gonzalez [antropóloga e ativista dos movimentos negro e de mulheres] de ser candidata, nos faz pensar em que tipo de ruptura precisamos fazer agora com um conjunto de alianças que fomos estabelecendo pois, por incrível que pareça, a grande contradição emergiu agora.
E o que nos assusta é que nossos supostos aliados no campo à esquerda estabelecem um novo tipo de pacto em que, para se sustentarem politicamente, abrem mão de nós. Abrem mão das parcerias e parceiros históricos para um imediatismo, um adesismo, uma anulação do que eles também são. Estou falando da esquerda branca que acha que pode fazer uma narrativa sobre nós e dizer publicamente o que deve ser o nosso sonho. Discordamos desse ponto de vista. Temos muito mais a dizer do que nossos supostos tradutores.
E temos muito mais a dizer, porque nos modelos de desenvolvimento que estão postos, não só no Brasil, não nos enxergamos. Eles provocam rupturas com formas seculares que temos de sobrevivência, por exemplo o comércio de rua, nas cabeças das mulheres. As mulheres negras assumiram as ruas para vender comida, roupa, artesanato, pescado, plantas, flores. Adentramos o espaço público e dominamos secularmente este espaço buscando alternativas autônomas e de cabeça erguida para sobreviver e sustentar nossas famílias. E esses modelos, com os quais nossos parceiros históricos fazem alianças, pegam uma comida como o angu à baiana no Rio de Janeiro e proíbem a mulher de vender ‘porque ela não tem as condições de higiene’. E aí entregam o espaço a um food truck, a um branco, para vender. Aí não tem aliança, porque é mexer com nossa forma de existir.
Ou tentar proibir as baianas de venderem acarajés na Copa do Mundo para colocar redes de fast food na região dos estádios.
Exatamente. Ou tentar criar uma confusão de que o acarajé pode ser vendido de qualquer jeito. Nós não entendemos que acarajé possa ser vendido fora do tabuleiro, sem os trajes, porque aquilo tem uma relação com questões do sagrado que disputamos enquanto modelo civilizatório neste país.
Estou colocando alguns exemplos que são emblemáticos de ruptura de alianças de longa duração da população negra, que sempre empurrou a esquerda para a esquerda. Porque a tendência da esquerda branca, de classe média alta, que transita no mundo acadêmico, é de ir da esquerda para o centro. Então, ao afirmar que ‘entre esquerda e direita eu sou preta!’, Sueli Carneiro [filósofa e ativista do movimento de mulheres negras] está dizendo que somos nós que empurramos a esquerda para a esquerda. Em 1910 foi João Cândido que puxou para a esquerda o que havia de enfrentamento àquela República. Em 1931, Laudelina de Campos Melo e José Correa Leite empurraram a esquerda para a esquerda. O Teatro Experimental do Negro, as posições de Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento empurraram a esquerda para a esquerda. Porque ela não seria empurrada sem essa intervenção intelectual qualificada. Lá em 1949, Guerreiro Ramos, e em 1937, Edison Carneiro.
Então, ou compreendemos que tipo de disputa secular é essa que temos feito ou continuaremos achando que é possível falar de um sindicalismo só a partir da chegada dos imigrantes. Mas em 1854 deixamos Salvador sem água durante dias com a greve dos carregadores de água e das mulheres ganhadeiras. Não é possível contar uma história de enfrentamento sem entender o que fizemos no Maranhão, no Rio de Janeiro e no Bixiga, em São Paulo, ou no que é o hoje o Mercado de Porto Alegre. Ou recolocamos essa história ou os vencedores vão contá-la. E a margem quer falar, quer gritar.
Nesse debate sobre alianças e lutas conjuntas se insere também a polêmica sobre a educação de gênero nas escolas. E não é só gênero, mas também raça. Gostaria que comentasse a retirada da discussão sobre raça e interseccionalidade dos planos de educação.
Sim. E também a religiosidade afro-brasileira, quando se fala de narrativa e contranarrativa, de posições hegemônicas – é isso que digo de ‘não dormir com os olhos da outra’. Fazemos aliança até um determinado ponto, mas existe um ponto em que há uma incompreensão mesmo, porque o lugar de privilégio também embaça a visão. E o que estamos fazendo, em um diálogo franco como o que fizemos hoje, é desembaçar a visão. Porque, com o tipo de disputa que o campo conservador deste país nos colocou em relação ao Plano Nacional e aos planos municipais de Educação, não cabe termos nenhuma vacilação em perceber que o debate horizontal de gênero, raça e direitos sexuais tem que caminhar junto.
No entanto, é muito periférica a fala da militância que se avoca a sustentar os direitos de liberdade e diversidade sexual em relação à questão racial. A militância LGBT nem chega perto do debate sobre as demandas das mulheres, e muito menos do debate de igualdade racial ou superação do racismo, que é mais difícil ainda. E no campo do debate sobre os direitos das mulheres, às vezes, há toda uma fala hegemonizada exclusivamente pelo gênero. Nós também às vezes suprimimos algumas questões, mas o esforço é para que pelo menos as pessoas que estão mais radicalizadas no campo da esquerda não percam esse eixo.
Contatos da fonte
Vilma Reis – socióloga, atualmente é ouvidora-geral da Defensoria Pública do Estado da Bahia
Tel.: (71) 3117-6952
E-mail: [email protected]
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