A iniciativa não é dele. Surgiu nos EUA há uns dois anos, existe aqui no Brasil também (procure por “Não tem conversa”) e qualquer homem pode participar: se não houver uma mulher escalada, basta recusar o convite para falar em público e explicar por que aos organizadores. A ideia é parecida com outra que ganhou o Brasil nas últimas semanas, o #agoraéquesãoelas, no qual homens com espaço na mídia cederam suas colunas para mulheres escreverem.
Quem organiza eventos ou contrata colunistas para escrever nunca vai admitir que existe machismo na escolha. Geralmente, justifica-se o excesso de homens pela competência deles: “queremos apenas os mais importantes e os melhores”. Mas é inocência supor que o machismo não age quando deixamos o mundo seguir a ordem natural das coisas – e que é só a capacidade dos homens que os leva aos lugares de destaque. Duvida? Dá só uma olhada em quem manda no planeta. No topo do mundo, há menos mulheres do que em borracharia de beira de estrada. Apenas 4% dos CEOs são do sexo feminino. 8% dos diretores executivos de empresa são mulheres. 17% dos vencedores do Nobel. 1% dos diretores que levaram o Oscar. Até em trabalhos tradicionalmente “de menina”, o cume é todo masculino. Quem é o melhor cozinheiro do mundo? Um homem. O maior costureiro? Um homem. O mais famoso bailarino? Um raio de um homem. Mesmo que algum acaso do destino tenha feito com que esses homens tenham competido com mulheres muito mais fracas pelas vagas, é muito implausível que toda essa diferença venha da nossa falta de competência, né?
Como esta é a SUPER, não custa falar um pouco de ciência. Não há nenhum motivo biológico ou evolutivo que prove que mulheres são menos capazes do que homens. Cientistas já cansaram de derrubar qualquer teoria sobre limitações intelectuais. Mesmo aquela velha história que diz que eles têm melhor desempenho em raciocínio lógico é lorota. A pesquisa mais recente(1) feita sobre o assunto analisou os resultados matemáticos ao redor do mundo descartando, finalmente, as diferenças culturais, como o acesso à educação. (Como se sabe, em boa parte do mundo, meninas não são incentivadas a estudar.) Num passe de mágica, as diferenças caíram para zero – especialmente em países com maior igualdade, como a Suécia e a Noruega. Até aqui no Brasil mulheres já estudam mais do que homens. Somos a maioria em universidades. Tiramos notas mais altas nas provas. Ou seja, é injusto dizer que apenas homens têm capacidade de chegar ao topo. Foi alguma coisa que tirou as mulheres de lá (uma mistura de coisas, na verdade, que são assunto para outro texto e que tem a ver com machismo, sim).
O problema é que é o topo que ainda toma as decisões – para todo mundo que está abaixo. O caso do nosso Congresso é exemplar. No Brasil, apenas 9% dos representantes são mulheres. Temos menos parlamentares femininas do que países como Paquistão, Afeganistão e Arábia Saudita. Mas “tudo bem”, você pode dizer, “o gênero não é relevante para votar em leis”. Isso é óbvio: ambos os sexos podem ser igualmente incompetentes na hora de aprovar o próprio aumento salarial, por exemplo. O problema está em votar questões que interferem mais na vida de um ou de outro gênero. Pense no aborto. Apenas mulheres morrem por consequência de abortos ilegais. Apenas mulheres não podem escolher não ter um filho – homens podem e fazem essa escolha o tempo todo: desaparecem da vida das crianças que concebem aos milhões. No momento, há um projeto que descriminaliza o aborto no Brasil correndo pelo Congresso. No Vote na Web, um site que posta os projetos da Câmara para todo mundo votar, 56% dos brasileiros são a favor da ideia. Mas, entre mulheres, a aprovação vai para 70%. Ou seja, há uma diferença de gênero importante aí. Se nos deixassem decidir, talvez o aborto não fosse crime no Brasil. Assim como não é crime na Suécia, na Espanha ou na África do Sul, onde quase metade das legisladoras é mulher. Mas, como aqui são eles que decidem na forma de um Congresso quase 100% masculino, acaba acontecendo o contrário: os projetos que avançam são os opostos, como o 5069 de Eduardo Cunha, que quer dificultar a interrupção da gravidez em caso de estupro. Representação nesses casos importa – e muito.
Acredite, sei do que estou falando. Trabalho aqui na SUPER há sete anos. Não escrevo apenas sobre questões femininas. Tenho milhares de interesses diferentes, na verdade: gosto de exobiologia, mistérios da medicina, evolução humana, literatura, ficção científica. Mas sou a única mulher do time de editores aqui (nunca houve mais de uma, aliás) e, se eu não defender reportagens que são importantes para o gênero todo, ninguém vai. Fiquei um ano tentando convencer meus colegas de que deveríamos fazer uma capa que combatesse a violência sexual, até que enfim ela saiu, em julho deste ano, com o título de “Estupro”. Foi a edição que mais gerou repercussão positiva dos últimos anos, alcançou 20 milhões de pessoas nas redes sociais e ajudou centenas de mulheres a lidarem com seus traumas. Foi também uma reportagem conectada com o tempo: a igualdade de gênero virou tema de redação do Enem e levou milhares de mulheres às ruas justamente contra o corrupto Cunha. Não estou no cargo mais alto aqui, nem posso tomar decisões para igualar os gêneros em lugar nenhum, mas em janeiro saio de licença-maternidade. Vou me afastar por alguns meses e, se não entrar uma mulher no meu lugar, a SUPER vai ser mais um lugar onde apenas homens palpitarão. Espero que escolham uma colega – porque, se depender da “ordem natural das coisas”, nossa voz não vai ser ouvida, não.
Acesse no site de origem: Botem as mulheres no lugar. No lugar em que se tomam as decisões, por Karin Hueck (Super Interessante, 04/12/2015)