(Folha de S. Paulo, 06/12/2015) RESUMO Artigo responde a críticas que apontam virulência no discurso feminista na internet, como a publicada pela colunista da Folha Tati Bernardi na“Ilustríssima” de 29/11. Autora defende que a tomada de voz pelas mulheres, como outros grupos historicamente silenciados, é violenta na medida em que é violento romper o silêncio.
“Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.” A frase de Brecht, embora exaustivamente repetida, ainda é necessária para mostrar que certas formas de violência são naturalizadas enquanto outras são tratadas como barbárie.
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Entretanto os que hoje chamamos de bárbaros são aqueles que tentam, de algum modo, suspender o fluxo de violência necessário para manter alguns grupos em condição subalterna. Estudantes ocupando escolas para defender seu lugar de formação são vistos como bárbaros pelo governo que os acua e ameaça, assim como ativistas que denunciam o crime ambiental da Vale/Samarco e mulheres que lutam contra o PL 5.069.
Com a ascensão do movimento feminista no Brasil, que ocorreu sobretudo por meio de ações nas redes sociais, surgiram também aqueles que pretendem assumir o lugar de consciências críticas. Intelectuais que tentam deslocar o debate sobre a questão dos direitos fundamentais das mulheres para uma crítica sistemática à suposta violência presente no discurso delas.
A deturpação é tão perversa que é preciso então perguntar: mas por que incomoda e revolta mais a “violência” das feministas nas redes do que as estatísticas de violência contra mulher?
A analogia com o rio interessa novamente, já que a violência das margens que determinam e limitam a existência das mulheres é mais uma vez invisibilizada. E pior: as margens são reforçadas, quando a voz das mulheres, ao se desaprisionarem de um emudecimento histórico, é reconhecida como violência e brutalidade. Um grunhido estranho que precisa ser silenciado. É um gesto político considerar que aquilo que é visto como violência é um estado necessário de desaprisionamento. Romper o silêncio é sempre violento. O próprio processo de conquistar uma voz no espaço público, semelhante ao que experimentam os escritores, é marcado pela violência, quando não pelo arrivismo e pela competição desenfreada entre os pares.
No caso que aqui interessa, a violência das falas feministas, antes de ser condenada por juízes apressados, poderia ser vista como interrupção do fluxo de violência naturalizada que mantinha todas essas vozes emudecidas. Uma violência necessária para romper coletivamente. Para se colocar de pé e falar em seu próprio nome. Defender seus direitos. Completamente oposta ao discurso de ódio.
Talvez essas novas vozes incomodem não só por não se encaixarem em estereótipos de feminilidade, mas por ameaçar sujeitos interessados em se perpetuarem como os únicos falantes, os únicos a quem seria legítimo escutar.
O surgimento de novas vozes abala o monopólio do discurso –e desperta uma espécie de medo narcísico. É esse medo que conduz às tentativas de margear o discurso “violento” do outro: o que incomoda não é a violência discursiva das mulheres, mas o próprio ato de o emudecido começar a falar.
Quando revisitamos a história recente dos movimentos sociais no Brasil, é possível perceber que tanto o discurso considerado violento quanto o discurso pacífico foram igualmente emudecidos. Em junho de 2013, a divisão entre vândalos e pacíficos serviu tão somente para enfraquecer, deslegitimar e emudecer o movimento inteiro. Dividir para conquistar.
SUBALTERNO
Em 1983, a pensadora indiana Gayatri C. Spivak, perguntava: “Can the Subaltern Speak?” (“Pode o Subalterno Falar?”, editado no Brasil pela UFMG). No ensaio, o termo subaltern/subalterno é usado para se referir a grupos marginalizados, aos quais são negadas voz e representatividade.
Grupos subalternos são submetidos a mecanismos perversos de poder que agem sobre as suas ações. Não é por acaso que consciências críticas surgem para agir sobre a ação das mulheres, definir qual é o feminismo aceitável e qual deveria ser banido. Trata-se de uma tentativa de controle.
Embora haja um esforço para construir uma igualdade fictícia, mulheres ainda estão em condição de subalternidade em relação aos homens: têm menos poder político, social e econômico.
Antes disso: o próprio grupo de mulheres é heterogêneo, formado por subgrupos marcados por hierarquias de poder.
Portanto o direito à voz precisa ser pensado de acordo com essas diferenças e não aplicando a mesma régua para todas. Se mulheres começaram a falar, algumas vozes (sobretudo aquelas alinhadas ao poder masculino e as brancas e de classe alta) encontram maior caixa de ressonância.
Talvez a própria ideia de que o surgimento de novas vozes imponha um feminismo único revele justamente o seu contrário: havia um feminismo que representava mulheres em posição de elite que era exposto como único. No entanto, com o surgimento de vozes marcadas por outras clivagens sociais além do gênero, o monopólio desse feminismo foi ameaçado pela diferença. Por mulheres que, com a sua existência, questionam a generalização das demandas materiais e simbólicas de mulheres privilegiadas como sendo as de todas as mulheres.
Cabe retomar a pergunta de Spivak de outro ponto: podemos escutar essas vozes? Podemos escutar verdadeiramente, sem querer determiná-las, limitá-las, modular a sua altura? Sem querer que elas sejam docilizadas para caberem em discursos publicitários inofensivos, sem que sejam captadas, esvaziadas de sentido, para serem utilizadas por organizações políticas que pretendem transformá-las em palanque?
É preciso coragem para assumir os riscos de escutar: a escuta tem a capacidade de nos mover de nós mesmos. Determina um jogo instável em que transitamos de falantes a ouvintes para depois retomarmos a fala. Em última instância, é preciso não impor ao outro que, para ser ouvido, se encaixe numa determinada matriz de discurso e sirva a determinados interesses.
É como nos versos de Anna Akhmátova: “E finalmente pronunciaste a palavra, não como quem se ajoelha, mas como quem escapa da prisão”.
FUNDO POLÍTICO
Continuo, em linhas gerais, achando que críticas podem promover deslocamentos importantes, mas precisamos ainda perguntar: qual é o fundo político dessas críticas?
Rancière já mostrava que mesmo os maiores defensores da democracia reagem com certo ódio diante de novas vozes: quem sempre pode falar é tomado por um medo narcísico de precisar também escutar. Não por acaso, conceitos como “lugar de fala” causam tanto desconforto. Lugar de fala, grosso modo, é o ponto de vista que membros de um grupo têm de processos sociais pelo lugar que ocupam na sociedade.
O lugar de fala não ameaça a dimensão material da verdade com verdades parciais e subjetivas (como sugerem alguns); permite o desaprisionamento de vozes e, consequentemente, de saberes. É uma tática de resistência. Um modo de fazer com que aqueles que sempre foram objeto de estudo possam ser também sujeitos políticos, por meio da valorização das suas vivências para a construção de teorias. Afinal, são as teorias que precisam se encaixar nas vivências –e não o contrário.
As críticas apressadas, porém, nos colocam diante de uma distopia: enquanto se discute a violência do discurso das mulheres, a Marcha das Mulheres Negras, as mais historicamente silenciadas, encontra-se com a violência de manifestantes pró-impeachment às portas do Congresso Nacional.
Enquanto intelectuais dizem que mulheres estão determinando quem pode ou não falar, tentando estrangular um futuro distante que os ameaça, ainda precisamos de iniciativas como o #Agoraéquesãoelas para ocupar um espaço que deveria ser nosso por direito.
Como Foucault sustentava, o papel do intelectual não é mais o de se colocar um pouco à frente para representar a voz dos emudecidos, não lhe caberia nem sequer ser a consciência crítica dos movimentos sociais; o papel do intelectual é, antes, o de lutar contra as formas de poder que barram, invalidam e limitam as vozes insurgentes.
Sejamos todos bárbaros!
Nota da autora: Aos que quiserem continuar o diálogo, deixo indicações de páginas feministas para seguir no Facebook: Afronta, Empodere Duas Mulheres, As Mina Na História, Eta Mídia Machista, Arquivos Feministas, Memória Feminista.
DANIELA LIMA, escritora e ativista, é autora de “Sem Importância Coletiva” (e-Galáxia).
Acesse o PDF: Contra a violência naturalizada, sejamos todos bárbaros, por Daniela Lima (Folha de S. Paulo, 06/12/2015)