(O Estado de S. Paulo, 13/12/2015) ‘As minas da linha de frente são zica’, diz estudante sobre o protagonismo feminino nas ocupações das escolas estaduais
A tia Helena está esperando no pátio da Fernão. Veio dar um abraço, trazer um lanche e saber se a sobrinha está bem. Enquanto a menina não aparece, lamenta nunca ter tido o mesmo tipo de coragem – ponderando que foi estudante nos anos 70, que eram os militares e que muita gente sumia. “Não que hoje seja fácil. Longe disso. A Marcela ficou marcada. Tem muita foto dela circulando por aí. Tenho medo que a polícia entre na ocupação e tente algum tipo de vingança; tenho medo que algum bandido tenha acesso à escola e…”
Helena interrompeu sua lista de temores para apontar um garoto japonês que atravessava o pátio. “Olha lá, o japonesinho! Ele está com tudo. Tem participado ‘intensamente’ da ocupação. Esses dias tinha uma marca de chupão no pescoço dele, acredita? Pois é, esse é um outro medo, o medo que ela engravide. Já disse pra ela que é pra focar na causa mesmo.”
Alheia aos temores da tia, Marcela Nogueira dos Reis, 18 anos, aparece sorridente no pátio da escola. Não vem vestida de Che, mas de “Axé Bahia – Porto Seguro”. De primeira, fica difícil acreditar que ela é a mesma garota que disputou, aguerridamente, uma carteira escolar com um policial militar no cruzamento da Faria Lima com a Rebouças, durante uma manifestação ocorrida no último dia 30 de novembro (imagem que viralizou, transformando-a em uma espécie de símbolo do movimento dos estudantes contra a reorganização escolar proposta pelo governo do Estado).
Marcela dá um abraço demorado na tia – e conta que foi na companhia dela que participou da Marcha Mundial das Mulheres, sua primeira manifestação, ainda no início deste ano. A experiência fez com que se engajasse no Levante Popular da Juventude e iniciasse sua formação política. “Ouço rap nacional, que sempre manda a real, e tenho lido manifestos comunistas”, conta. Em pouco tempo, sua dedicação ao Levante fez com que ela ganhasse status na organização. Assim, quando as ocupações começaram, Marcela foi “transferida” da Escola Estadual Godofredo Furtado (onde estuda) para a escola mais emblemática desse processo, a Fernão Dias Paes, em Pinheiros.
Ou seja, no passo que vai, tem tudo para fazer carreira como liderança estudantil ou política e… “Vou ser médica cirurgiã”, avisa. Ao responder à pergunta mais tola ( “por que cirurgiã?” ), ela manda a resposta mais certeira: “Você tem noção do que é ter um coração nas mãos, mano?” Sem que o mano tenha tempo de responder, Marcela explica: “Já mexi em cadáver. É muito legal”.
É tudo vivo no discurso ainda em formação da Marcela. Ela tem uma ascendência natural sobre seus colegas, ascendência que vem da empatia, da facilidade de comunicação e de uma certa leveza nos enfrentamentos. De certo que ainda não se impregnou do modelo mais sisudo da militância clássica. Tem, por exemplo, a inteligência de traduzir “empoderamento feminino” por “as minas da linha de frente são zica”.
Marcela é zica. As outras garotas da ocupação são zica também. Não tem musa. Não tem darling. Tem zica. E quando outra estudante, Luisa Coelho, 17 anos, grita por ordem e chama uma pequena votação, Marcela divide seu protagonismo sem nenhuma crise. “É o seguinte galera, vamos votar! Três opções: vamos para a manifestação da Avenida Paulista caminhando, pagando passagem ou fazendo catracaço (que significa pular a catraca do metrô e não pagar a passagem)?”
O catracaço vence por aclamação. A turma da ocupação do Fernão Dias Paes segue para a estação Fradique Coutinho, em Pinheiros. Umas meninas se pintam, gritam palavras de ordem e trocam suas botas preferidas por sapatos folgados de ‘bater perna’. Nas bolsas, um kit básico para enfrentar o gás lacrimogêneo: soro fisiológico, leite de magnésia e vinagre.
A linha de frente feminina tem uma razão prática: proteger os garotos. Como a maioria dos policiais ou seguranças são homens, a presença feminina entre os manifestantes causa certo constrangimento, evitando, ao menos é o que se espera, ações mais violentas. “Se tiver conflito, tudo bem. Já estamos viciados nesse gás que eles atiram em cima da gente”, brinca uma estudante.
O grupo passa sorrindo pelas catracas – com um segurança do metrô agindo mais como um organizador do catracaço do que reprimindo-o.
No trem, Marcela não se deixa intimidar com os olhares de reprovação de parte dos passageiros. “Burguês, essa luta também é de vocês”, convoca (a definição de burguês é bastante ampla e alcança qualquer um que não esteja do lado dos estudantes). Outras garotas se dão ao trabalho de explicar aos interessados que a ocupação continua porque o governo do Estado apenas suspendeu a reorganização escolar. “E suspender não é cancelar. São coisas muito diferentes”, diz uma delas.
Já na Paulista, Marcela circula entre os mais diversos grupos como se fosse a anfitriã de uma grande festa. Não raro, é abordada por outras garotas e até professores. “Você é uma inspiração. Chorei quando vi sua foto na internet. Você é a capa do meu Facebook. Você me devolveu alguma esperança”, repete uma professora.
E, de novo, Marcela exerce seu protagonismo sem forçar a barra, sem microfone, caminhão de som ou palanque. Com ela, é tudo no chão. Trabalho de formiguinha mesmo. Tão de formiguinha que perdê-la no meio da manifestação foi a coisa mais corriqueira. Uma piscada e cadê a mina?
Na procura, cruzamos com outras Marcelas. Marcelas de skate; Marcelas com camisetas de banda de rock; Marcelas de cabelo espetado; Marcelas de punhos cerrados; Marcelas de óculos; Marcelas magras; Marcelas gordas; Marcelas negras e loiras; Marcelas de todos os nomes e estilos.
No meio da Paulista, Marcela (a original) foi vista de braço dado com um padre franciscano, com um importante representante dos Direitos Humanos, com uma mulher que poderia ser sua tia Helena (mas não era) e com velhos e novos companheiros de causa. Estar ao lado de Marcela, aparentemente, era estar do lado certo.
Nesse jogo de esconde, já no final da manifestação, Marcela aparece com a voz rouca de tanto gritar. Também se perdeu dos amigos, precisou se esconder em um bar para escapar da polícia que subia, na contramão, a Rua Augusta. “No final, o ideal era relaxar, tomar uma cerveja. Mas sabe o que vai acontecer depois? A gente vai voltar para o Fernão. Ainda tem assembleia depois da manifestação, mano! Acredita? Assembleia!”
Assembleia depois de tanto esforço é zica. Ainda assim, Marcela antecipa o balanço daquele dia de manifestação. “Mano, eu vejo, eu sinto, eu sinto a revolução chegando. Revolução, cara!”. Embora seja improvável que os resultados cheguem aos pés da empolgação da estudante, não é de todo errado supor que algo diferente possa brotar desse coração – que já está nas mãos dela, manos.
Gilberto Amendola
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