(Folha de S.Paulo, 04/01/2016) Jennifer Borges, 28, ou simplesmente J. Lo, nasceu e cresceu em Irajá, zona norte do Rio de Janeiro, querendo ser “artista de galeria”, mas achava que essa realidade estava longe de ser a sua.
Inspirada pela mãe, psicopedagoga, que abriu caminhos e foi a primeira da família a ter ensino superior, Jennifer seguiu caminhos paralelos à arte até os 27 anos: se graduou em história pela UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), onde hoje cursa letras.
A jovem resolveu se aventurar no grafite há um ano, após um empurrão de uma amiga. Acabou virando professora, mas de grafite em escolas municipais cariocas.
Foi quando Jennifer conheceu a Rede Nami, associação feminista de grafiteiras e militantes que usam artes urbanas para promover os direitos das mulheres, fundada pela artista plástica Panmela Castro, 34, finalista do Prêmio Empreendedor Social 2015. Por meio da organização, J.Lo e sua arte chegaram à Galeria Scenarium, no centro do Rio, em setembro de 2015.
“Foi surreal. Nunca imaginei que uma menina preta, pobre, periférica e sapatão conseguiria um dia estar em uma galeria de arte”, conta.
A carioca participou do projeto Afrografiteiras, um programa de formação em arte urbana voltado para mulheres afrobrasileiras.
Leia a seguir o depoimento de Jennifer Borges à Folha.
Meu nome é Jennifer Borges, mas sou conhecida como J. Lo.
Comecei a grafitar há um ano. Uma amiga de São Paulo estava aprendendo as técnicas e fez um desenho na parede da minha sala, fiquei observando e resolvi que iria aprender.
Eu já tinha noção de desenho e arte, sou tatuadora, mas não de grafite.
Comecei a dar oficinas de grafite em uma escola municipal do Rio para crianças e jovens do ensino fundamental 1 e 2. Lá, eu não só ensinei, mas aprendi, foi onde fiz meu primeiro grafite, retratei Nelson Mandela. A paixão pelo grafite foi instantânea.
Virei arte educadora e hoje dou aula de grafite em três escolas municipais por meio do Programa Mais Educação, do governo federal.
Primeiro, ensino dentro da sala de aula aos meus alunos, que têm em média de 7 a 14 anos, técnicas e estilos de desenho de grafite. Depois, eles começam a trabalhar o desenho e quando já está maduro, passo as técnicas de ampliação e finalmente vamos para a prática na parede.
Depois das aulas de grafite, as professoras dos meus alunos falam que as notas deles subiram, que aprenderam a ter disciplina.
O grafite me traz paz, me sinto muito livre, mais do que poderia ser. A arte é uma terapia e é o que me faz feliz e me dá orgulho de mim mesma.
No final de 2014, saiu uma convocatória que selecionaria 30 meninas afrobrasileiras para fazer um curso de formação em arte urbana, empreendedorismo social, gestões de gênero e de negritude voltado ao grafite. Me inscrevi e fui selecionada.
Estava esperando por um curso no qual eu fosse aprender o beabá do grafite. No entanto, as aulas foram muito além do que imaginava.
As meninas grafiteiras, que orientaram a formação, eram muito preocupadas com o nosso aprendizado e que nós expressássemos nossa política, negritude e outras questões pessoais na arte.
A intenção da formação também era que nós soubéssemos multiplicar esse conhecimento para passar para outras pessoas.
NA GALERIA
Recebemos a notícia de que as meninas que concluíssem o curso teriam suas artes expostas em uma galeria. Eu enlouqueci. Larguei o emprego e tranquei a faculdade por um período para poder me dedicar mais.
Eu sou historiadora, com foco de pesquisa em mulheres na inquisição. Fiz um estudo sobre bruxaria. Então, quis levar esses conceitos para dentro da galeria.
Elaborei uma obra que representa as bruxas, que foram mortas pela igreja por causa de uma hiperssexualização. A arte que criei é uma vagina, feita com madeira, massa modeladora e instalações elétricas.
Essa composição é para representar a mulher que dá a vida e o único órgão que existe no corpo feminino para proporcionar prazer.
A outra obra é uma aplicação em stencil e retrata uma mulher negra espelhada com a língua para fora, que simboliza o antiamor e a lesbiandade.
Foi a coisa mais maravilhosa do mundo poder estar na galeria ao lado das outras afrografiteiras. É surreal.
Eu sempre quis ser artista desde pequena, mas nunca imaginei que uma menina preta, pobre, periférica e sapatão conseguiria um dia estar em uma galeria de arte.
Quando estreou a exposição, chorei muito. Foi uma emoção gigante. Não tenho como agradecer a Rede Nami e a Panmela Castro por causa disso.
O que eu aprendi nas aulas melhorou minha arte em tudo, no grafite, na tatuagem e na ilustração.
REPRESENTATIVIDADE NEGRA
Depois disso, tive uma oportunidade de fazer um grafite para a Anistia Internacional e retratei minha avó.
Ela foi uma mulher negra que sofreu muito, antes de morrer, em 2008. Minha avó era muito pobre e se casou com um homem branco na tentativa de embranquecer as filhas, para que elas não sofressem tanto racismo.
Para mim, minha avó é uma fênix, símbolo da ressurreição e da força. Representá-la de forma artística e em lugares onde passam pessoas é muito importante.
A figura de uma mulher negra é subversiva pela representatividade. Temos uma mídia que é sempre branca. As mulheres que aparecem são sempre brancas, seguem um padrão estético, higienizado e europeu.
Quando você passa na rua e se reconhece em uma imagem, se sente mais forte e encorajada para ser quem é. Não só se assumir sua negritude, seu cabelo, mas enfrentar o racismo e se empoderar.
A simbologia de ter diversas mulheres negras em uma galeria pode ser um estímulo para outras mulheres negras.
Agora, tento não projetar muita expectativa no grafite, porque tenho medo de me decepcionar.
Quero passar uma mensagem positiva de empoderamento negro, lésbico e feminino pelas ruas e ensinar as pessoas, que não têm a oportunidade de pagar um curso, a se expressar.
O que vier é lucro, eu não esperava chegar até aqui.
(…) Depoimento a
Eliane Trindade – Editora do Prêmio Empreendedor Social
Olívia Freitas – Enviada especial ao Rio
Acesse em pdf: ‘Preta, pobre e periférica, não imaginei estar numa galeria de arte’, diz artista (Folha de S.Paulo, 04/01/2016)