(O Globo, 12/01/2016) Alagoana radicada em Brasília, professora da UnB que integra grupo de bioética da Associação Brasileira de Saúde Coletiva veio ao Rio divulgar obra sobre mulheres presas
“Nasci em Maceió, cresci em beira-mar diversa, virei gente no cerrado. Confesso que nunca provei pequi. Sou professora forasteira em campo alheio. Perambulo pelas margens da vida, fiz filme em manicômio judiciário. Agora faço livro sobre reformatório para menores em conflito com a lei e filme na Cracolândia em SP”
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Conte algo que não sei.
Fiz uma pesquisa de quase cinco anos, em que apliquei um questionário a todas as detentas da Penitenciária Feminina do Distrito Federal. Vi o perfil da presa brasileira: preta ou parda, pouco escolarizada, boa parte envolvida com tráfico. Mas isso já sabemos. Senti que precisava entrar ali de forma diferente.
Que forma foi essa?
Queria ouvir as histórias delas, que reuni num livro chamado “Cadeia: relatos sobre mulheres”. Em 2014, durante seis meses, todos os dias, fui ao presídio ouvir o que elas falavam nas consultas com a médica, a psicóloga ou o assistente social. Eu ia sempre de preto, como carcereira.
Por quê?
Elas sabiam que eu não era, já tinha ido lá como pesquisadora, mas me vestia assim para manter a imagem da carcereira, sempre ao lado da presa nas consultas. Fiz escutas. Vi que o núcleo de saúde é uma ilha dentro do ambiente de prisão. Ouvi o que as presas contam para sobreviver.
Que tipo de histórias selecionou em 6 meses de escuta?
Eram de dez a 15 consultas de manhã, mais dez a 15 à tarde. Por exemplo, uma avó indígena, visitadora da filha e do filho na cadeia, que, para pagar dívida do filho, ameaçado de morte, entrou com maconha na vagina. Aí ela “caiu”. Foi presa, e, como foi em flagrante, em área de segurança, pegou pena alta. Virou vizinha da filha na prisão. Há também uma mulher que já tinha sido libertada, mas que decidiu montar uma barraca do lado de fora do presídio. Quis ser presa de novo; quando passou um camburão, jogou pedra.
Qual a razão de agir assim?
A prisão institucionaliza, né? Ela não sabia mais viver fora dali. Outra presa se suicidou, por enforcamento. Tinha chegado a sentença dela, e era longa. E ela tinha dívidas lá dentro.
E as presas grávidas?
Havia uma estrangeira que teve filho na cadeia. Ele ficou mais de um ano lá, porque demoraram a achar a família, e passou a reproduzir procedimentos: baixar o rosto e botar a mão para trás quando via uma mulher de preto. Outra escuta foi de uma “noviça” de cadeia: tinha 18 anos e três dias de idade. Mas já havia passado por reformatórios. Aliás, na pesquisa que fiz antes, vi que uma em quatro presas já passou por instituição socioeducativa quando menor, um dado sobre a interseção entre esses dois sistemas que não se tinha. São sistemas punitivos que não reabilitam. Produzem abandono.
O que viu sobre a saúde da mulher na prisão?
Para a presa chegar ao núcleo de saúde, tem de fazer um “catatau”, como são chamados os bilhetes que presos escrevem pedindo consulta, descrevendo as dores que têm. O critério para a escolha dos “catataus” deveria ser sempre médico, né?
E não é?
Quem faz a triagem são as carcereiras. É o “colete preto”, não o “jaleco branco”. Muitas vezes, pesa se a detenta tem bom comportamento. Há um critério de merecimento aí. E, quando a presa chega, fica aguardando sua vez num lugar que chamam de “corró”, que vem de “correcional” e é um termo da época da ditadura. Entram em fila, algemadas.
Mesmo doentes?
Não importa se têm dores intensas, ou se estão grávidas. Se é mãe com a criança no colo, uma das mãos é algemada, e a outra segura o filho. E não há privacidade na consulta, apesar de ali não ser um espaço de segurança pública, mas de saúde pública.
Alessandra Duarte
Acesse em pdf: Debora Diniz, antropóloga: ‘Uma das mãos é algemada, a outra segura o filho’ (O Globo, 12/01/2016)