(BBC Brasil, 23/01/2016) Aos 13 anos de idade, Ed Jeferson Rodrigues de Oliveira preferia a dança ao futebol. Seu pai, inconformado com os gostos, para ele “de menina”, cortou a mangueira do botijão de gás e largou-o sozinho em casa, para morrer.
Ed foi salvo pela mãe. Cansado das agressões e com medo de uma possível tragédia, ele decidiu fugir de casa, em Mauá, cidade na periferia da Grande São Paulo. Após viver de ajuda durante um ano, o garoto foi acolhido por Arnaldo Menezes Miguel, conhecido por Fuh Miguel, “pai” da Família D’Matthah.
“Famílias” neste caso são grupos que constroem uma rede de jovens e adolescentes gays vindos, principalmente, da periferia. Os mais novos chamam os mais velhos, líderes do grupo, de “pais” e “mães”, daí o nome. “Foi o que me salvou. No grupo, consegui força para superar os problemas.”
Esse apoio mútuo é uma marca desses grupos, que também se unem em torno de causas sérias, como o avanço dos direitos LGBT, mas também para se divertir pela noite paulista – e, em alguns casos, até mesmo flertar com a criminalidade.
No caso de Ed, hoje com 20 anos, ele ajuda a D’Matthah em uma nova empreitada – a mobilização LGBT na periferia. Militante político, ele em breve assumirá uma cadeira no recém-criado Conselho Municipal de Direitos Humanos e Cidadania LGBT de Mauá.
O órgão surgiu de um projeto de lei sugerido pela D’Matthah, que reúne atualmente cerca de 120 jovens.
O grupo é também um dos responsáveis por outra conquista importante na cidade: o Dia do Combate à Homofobia. “Em 2016, queremos garantir o direito de pessoas transexuais usarem nome social, ou seja, aquele escolhido por elas”, diz Fuh Miguel.
Aprendendo a usar a força
Na Família D’Matthah, os pais aconselham seus protegidos em assuntos como sexo, drogas e ativismo político. O mesmo ocorre na Família Stronger, que tem mais de 200 jovens vindos de diversos pontos da periferia da Grande São Paulo.
Para aumentar a rede, Elvis Justino Sousa, de 29 anos, está sempre de olho em jovens que “saibam quem é Eduardo Cunha”, o conservador presidente da Câmara dos Deputados. Morador de Interlagos e ex-pastor evangélico, ele ingressou na Stronger há quatro anos para fazer o que mais gosta: militância.
O coletivo criou o Cinediversidade em Grajaú, bairro no extremo sul da capital paulista, que exibe filmes relacionados ao universo LGBT. Também planejou o curso “Aprendendo a Usar Sua Força”, que trata de temas ligados a sexualidade, gênero e política. Pelas iniciativas, o grupo conquistou o Prêmio Cidadania em Respeito à Diversidade em 2015.
“Participando das discussões, entendi que represento muitas minorias: sou mulher, negra, bissexual e periférica. E também quero ser ouvida”, diz Amanda Gomes, de 18 anos.
Para André Pomba, ativista e DJ conhecido na noite gay paulistana, o trabalho das famílias junto à periferia “quebra paradigmas”. E faz o mea-culpa. “A militância sempre privilegiou os gays do centro e de classe média”.
Diversão e amassos
Mas nem só de política vivem os jovens. “Aqui, meu recorde foi 21”, gaba-se Amanda, ao contar quantas pessoas, entre meninos e meninas, já beijou sob a marquise do Parque do Ibirapuera, em São Paulo.
Nos finais de semana, o local é tomado por uma multidão de adolescentes que cruzam a cidade para dançar funk, fumar (cigarro, narguilé e maconha) e dar uns amassos. É lá que algumas das “famílias” LGBT costumam se encontrar.
“Antes, a gente ia muito no Arouche (reduto do público gay no centro de São Paulo), mas, depois que a Guarda Civil instalou uma base lá, todo mundo foi para o ‘Ibira'”, explica Elvis. “Aqui eles ficam mais à vontade. Adolescente não gosta de ser vigiado por adulto.”
Além de frequentar o parque, os membros das “famílias” se comunicam por grupos no WhatsApp e no Facebook e também vão a “rolezinhos” em shoppings e baladas. As noitadas, no entanto, nem sempre são bem vistas por “pais” como Fuh Miguel, da D’Matthah.
“Tem alguns lugares que a gente não aconselha, porque rola de tudo: entrada de menores, sexo, drogas”, diz.
Máfia arco-íris
A diversidade das famílias é enorme. Além das engajadas, há aquelas que são coniventes com a criminalidade. “Tem muito trombadinha que ataca na Praça da República que é de ‘família’ LGBT”, conta um integrante da Stronger que prefere não se identificar.
Em baladas como a Freedom, na região central, e na festa Casa do Seu Zé, que acontece no centro e na zona leste, é comum o furto de objetos, como celulares e bonés, por membros de alguns grupos.
A marginalidade foi por décadas a principal marca das famílias. Não há uma data precisa, mas elas surgiram no centro de São Paulo com as travestis que faziam ponto na rua e eram abrigadas por cafetinas.
A mais famosa delas foi Andreia de Maio, que tomou conta do pedaço nos anos 1980. Além de casa e comida, a “chefona” garantia a proteção de suas funcionárias nas ruas.
“Ela era muito meiga, mas se alguém mexesse com alguma menina, sobrava tapa na cara. Por isso começaram a chamá-la de ‘mãe'”, relembra a drag queen veterana Kaká di Polly. “Numa gaveta da Prohibidus (casa noturna de Andreia), ela guardava um bom (revólver) três-oitão.”
Eram tempos em que a homossexualidade era frequentemente associada ao submundo. Hoje em dia, jovens como Kevin S., de 17 anos, sentem-se bem mais à vontade para ir atrás do que querem – e lutar para ser quem são.
“Filho” da Stronger, ele sai do Grajaú, onde mora, trajando calça, camiseta larga e boné de aba reta. Mas é entre os amigos que assume o novo nome que escolheu para si: Daphne. “Eu sempre gostei do mundo feminino, achava que queria ser drag queen para poder me maquiar”, explica.
Na “família” descobriu que, talvez, poderia ser transexual. “Vou procurar um psicólogo para me entender melhor, mas me sinto muito bem com meu novo nome. Você ainda vai ver ele bem grande, brilhando: DAPHNE”, diz, animado.
Vinicius Tamamoto
Acesse no site de origem: Jovens homossexuais da periferia se reúnem em ‘famílias’ de ativismo e diversão (BBC Brasil, 23/01/2016)