(El País, 12/02/2016) Relatos de leitoras do EL PAÍS mostram que o assédio moral e físico está latente nos dias de festa
Uma mulher vai para a rua com as amigas – rindo, maquiada, com pouca roupa e uma bebida na mão – e, no caminho, se encontra com um homem acompanhado dos amigos dele – alegre, geralmente sem camisa, bebendo também. O homem se aproxima da mulher, puxa seu braço, pede um beijo. Os dois riem, mas desta vez ela não está a fim. Ele insiste. Ela não topa a brincadeira e vai embora. Ele não gosta. Ela é mal-humorada e puta, inclusive, a depender da escolha entre eufemismo ou insulto direto. Ele está apenas pulando Carnaval.
Em uma enquete sobre assédio realizada em dois momentos (pré e pós feriado) pelo EL PAÍS em sua página no Facebook, essa é uma história clássica, que se repete nos testemunhos compartilhados por leitoras (na maioria dos casos) em comentários abertos ou mensagens privadas. É também um relato facilmente reconhecível por qualquer brasileiro que tenha participado de blocos e desfiles carnavalescos de sul a norte do país nas últimas décadas ou mais. No Carnaval, ao menos no Brasil, tudo começa com uma piada, mas nem sempre termina da mesma maneira. O assédio moral e físico, do qual muitas brasileiras são vítimas todos os dias, se intensifica nessa época do ano em que folia facilmente se confunde com falta de respeito e violência. Não é regra de ouro, porém as estatísticas comprovam: o jogo de forças pende sempre para o lado masculino, e a mulher se torna sua vítima.
Em uma pesquisa recente do Instituto Data Popular, 61% dos homens afirmaram que uma mulher solteira que vai pular carnaval não pode reclamar de ser cantada, e 49% disseram que bloco de Carnaval não é lugar para mulher “direita”. Isso porque 70% deles acham que as mulheres se sentem felizes quando ouvem um assobio, 59% acreditam que elas gostam de ser cantadas e 49%, de ser chamadas de gostosa. Na sondagem, realizada em janeiro deste ano para o site Catraca Livre para apoiar a campanha Carnaval Sem Assédio, foram entrevistadas 3.500 pessoas com idade igual ou superior a 16 anos, em 146 municípios.
No entanto, na enquete do EL PAÍS – que lançou a pergunta “neste Carnaval, você presenciou ou foi vítima de algum desrespeito?” –, o discurso delas é diferente. De Aracaju, Yasmin Barreto diz que sofre assédios no Carnaval todos os anos. Este ano, “fui para a rua com meu namorado e minha irmã, e precisamos atravessar a multidão para chegar perto de um palco. O caminho inteiro foi de comentários abusivos e de passadas de mão. Me sentia abusada a cada gostosa que escutei e respondi cada assédio com um ‘vou chamar a polícia, seu nojento’”, relembra, acrescentando que a luta feminista se espalhou pelo país em 2015 serviu para que ela não se calasse mais diante dos abusos.
Do Rio de Janeiro, Janaína Fernandes relata: “Peguei o metrô para voltar para a casa do meu namorado depois de ir a um bloco infantil em Botafogo. Estava vestida de palhaço. Quando desci, um grupo de jovens visivelmente bêbados começou a gritar coisas do tipo ‘Aí, palhaça, vem montar meu circo, vem descabelar meu palhaço’, e por aí vai… Pedi ajuda ao segurança da estação do Maracanã, e o que ele me disse foi: “Relaxa, menina, é Carnaval. Eles estão do outro lado da plataforma, é só brincadeira…”. Subi as escadas do metrô chorando e correndo, com medo de eles cruzarem para o meu lado da plataforma e o pior acontecer…”.
Licença para beijar
“No Carnaval, existe essa cultura de roubar beijo, algo visto como parte da festa. Mas isso é violência. Meu corpo é meu, e tem acesso a ele quem eu deixar”, resume a ativista e ouvidora geral da Defensoria Pública da Bahia, Vilma Reis. Para ela, “existe uma fronteira até onde a paquera pode ir, e essa fronteira é a violência”.
Em Salvador, essa cultura de naturalização do abuso foi combatida pelo segundo ano consecutivo com a campanha Vá na moral ou vai se dar mal, organizada pela Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM) do Governo da Bahia para conscientizar o público de blocos como o tradicional Filhas de Gandhy. Na capital baiana, onde o Carnaval é considerado a maior festa popular a céu aberto do mundo, são oito dias de eventos e, segundo Vilma, os casos de violência contra a mulher disparam. Um episódio que ganhou destaque na imprensa este ano foi o de uma nutricionista, Ludmylla Valverde, agredida por defender a irmã de assédio em Irará, a cerca de 100 quilômetros da capital.
De fato, na enquete lançada pelo EL PAÍS, alguns descreveram o Carnaval com a carga de desrespeito que costuma terminar em violência. “No Carnaval, o assédio está liberado”, disse um leitor do sexo masculino. Uma leitora concordou: “Se você não quer que passem a mão em você, melhor procurar outra festa. Carnaval é putaria”. Em outro comentário, este jornal foi criticado por “essas pautas esquerdistas, de respeito aos direitos humanos”. As reações a essas opiniões foram contundentes (“não está [liberado] não”), e houve também comentários sobre uma melhora no Carnaval: “Achei que os homens estão menos invasivos. Alguns agarram, mas não insistem tanto como antes”, escreveu Júlio Diógenes.
Será possível mudar hábitos tão enraizados? Vilma Reis tem certeza que sim. Para ela, uma grande aliada na luta das mulheres é a Lei Maria da Penha contra a violência doméstica, que há 10 anos “vem mexendo com esse imaginário coletivo no cotidiano brasileiro” e com a qual 72% dos brasileiros está familiarizado, segundo relatórios da SPM da Bahia. “Parece que a sociedade não está sendo impactada, mas está. Quando nós, mulheres, ficamos de pé, nos afirmamos e dizemos não à violência, os homens têm vários tipos de reação. Uma delas é banalizar a Lei Maria da Penha, como se fosse ‘mais uma lei brasileira que não pegou’”, afirma a ativista. “Mas, no fundo, eles sabem que ela ajudou e ajuda a descortinar esse mundo das sombras, essa cultura de privilégios que mancha e machuca que é o machismo e a misoginia”.
Camila Moraes
Acesse no site de origem: O machismo que desfilou pela avenida no Carnaval (El País, 12/02/2016)