(UOL, 28/02/2016) Durante os últimos quatro anos, Valéria Melki Busin, psicóloga social e docente na Unemat (Universidade do Estado de Mato Grosso), mergulhou no mundo particular de oito travestis para sua tese de doutorado: “Morra para se Libertar – Estigmatização e Violência contra Travestis”. Apresentado no IP (Instituto de Psicologia) da USP (Universidade de São Paulo), em abril de 2015, o texto fala sobre as dificuldades da classe em viver em uma sociedade na qual sair do padrão “pré-estabelecido” gera (muita) violência.
“A violência faz parte da vida delas e, de certa forma, elas estão cientes de que vão passar por isso. Escutar detalhes dessas histórias é quase insuportável. Qualquer travesti que saia à luz do dia está sujeita a ser agredida de todas as formas por desconhecidos. Todos acham que têm o direito de agredir e humilhar. Passei por situações de não conseguir dormir após as entrevistas, diante de relatos tão chocantes”, disse Valéria em entrevista ao UOL por telefone.
De acordo com a especialista, os números sobre a hostilidade que essas mulheres enfrentam são subestimados, uma vez que “as pessoas que atendem as denúncias ainda desconhecem as diferenças a respeito da sexualidade”. Mesmo assim, os dados reunidos pelo relatório anual de 2013 do GGB (Grupo Gay da Bahia), ONG voltada para a defesa dos direitos dos homossexuais, são alarmantes: 40% dos assassinatos de travestis no mundo acontecem no Brasil e, em sua maioria, são crimes de ódio.
Além disso, por conta da discriminação que sofrem e, consequentemente da falta de opção, cerca de 90% delas estão na prostituição, segundo a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). Valéria destaca também em seu doutorado a estatística da instituição sobre a expectativa de vida de uma travesti: 30 anos, muito abaixo da média nacional, 75,2, divulgada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), no final de 2015.
Durante a conversa com a reportagem, Valéria contou alguns dos momentos mais dramáticos e, ao mesmo tempo de aprendizado, que passou durante os depoimentos de Roberta*, Kharla*, Camily*, Rebecca*, Pryscilla*, Sharon*, Iara* e Cynthia*, que vivem em São Paulo. “Elas escolheram a capital paulista porque aqui conseguem certa invisibilidade em alguns espaços. E, sobretudo, têm maior possibilidade de socialização, o que as tira da solidão tremenda na qual são obrigadas a viver.”
A psicóloga fala que o ponto comum é a convivência com a violência desde muito cedo, pois tudo começa em casa quando, ainda crianças, já demonstram sinais de que se identificam com o feminino. “A Sharon, por exemplo, que hoje tem 23 anos, aos cinco, começou a apanhar do pai com requintes de crueldade. Os irmãos chegaram a dar cocô para ela comer por pura maldade. Aos 12, os pais a expulsaram de casa e ela passou a viver no fundo de um quintal, em uma casa parecida com aquelas de cachorro. Como não tinha opção, começou a se prostituir com essa idade”, diz Valéria.
O segundo lugar de tortura é na escola e, além da rejeição familiar, o preconceito dos colegas e educadores as amedronta a ponto de acharem que vão morrer e, por isso, abandonam os estudos. “Até ir ao banheiro era um risco sério de violência sexual. A escola delas não deu nenhuma guarida.”
*Os nomes foram omitidos para preservar as pessoas citadas.
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