(Jornalistas Livres, 08/03/2016) A III Conferência Municipal LGBT de São Paulo (CMLGBT-SP), que foi realizada nos dias 04 e 05 de março, foi marcada por um fato inédito na história do movimento LGBT brasileiro: os novos atores e atrizes travestis, mulheres transexuais e homens trans participando de forma maciça da cena política. “Isso está incomodando, principalmente a comunidade gay, porque eram sempre os gays que falavam por todas as letrinhas. Agora a nossa comunidade de travestis, mulheres transexuais e homens trans está se levantando com voz própria”, declarou Lam Matos do Instituto Brasileiro de Transmasculinidade (Ibrat).
Desde o seu surgimento, no final da década de 70, como o “movimento homossexual”, a militância LGBT sempre foi marcada pela presença hegemônica de ativistas homossexuais masculinos. Já nos anos 80, as mulheres lésbicas se reuniam de forma independente, sendo incorporadas pelo nascente movimento feminista brasileiro. Foi apenas em 1993 que travestis e mulheres transexuais começaram a se articular politicamente, tendo em vista a luta contra a epidemia de Aids que sempre fez muitas vítimas na comunidade trans, fragilizada pela extrema vulnerabilidade social.
Embora já houvesse o protagonismo individual de homens trans desde 2004, a criação da Associação Brasileira de Homens Trans (ABHT), em 2012, e do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT), em 2013, deu o impulso final a uma crescente articulação política de pessoas transmasculinas.
A III Conferência Municipal LGBT foi organizada pelo Conselho Municipal LGBT, um órgão “de caráter consultivo, deliberativo e propositivo” formado por 10 representantes da sociedade civil LGBT e 10 representantes do poder público, em parceria com a Coordenação Municipal de políticas LGBT. Foi realizada no Hotel Dan, no centro de São Paulo, e contou, em sua abertura no dia 04 de março, com a presença de Rogério Sotilli, secretário de Direitos Humanos da Presidência da República e de Eduardo Suplicy, secretário de Direitos humanos e Cidadania de São Paulo.
A Conferência aconteceu efetivamente no dia 05, com a parte da manhã destinada ao credenciamento dos delegados com direito a voz e voto que iriam participar do evento. Depois do almoço, oferecido apenas aos credenciados no próprio hotel, foi colocado à apreciação o regimento interno da Conferência para os delegados. O artigo 25, que tratava das regras da eleição dos representantes da sociedade civil que devem participar da Conferência Estadual LGBT, foi o ponto de maior disputa política.
As regras básicas para a formação das chapas eram que elas deveriam ter no mínimo 20 e, no máximo 100 integrantes, e que cumprissem os pré-requisitos de representatividade da comunidade LGBT, obedecendo os seguintes critérios: 60% de pessoas do gênero feminino, 35% de pretos e pardos, e ter pelo menos um morador/a das cinco regiões de São Paulo.
Thomas Fernando, do Ibrat, apresentou uma proposta alternativa ao sistema de chapas propondo que a disputa fosse individual que, segundo ele, garantiria maior paridade entre os representantes de cada segmento envolvido. Dessa forma, seria possível a eleição de pelo menos oito homens trans em vez de apenas um, ” levando em consideração que o número de homens trans que as chapas incluem é sempre para manter a cota.
Thomas criticou o governo por ao tornar pública as regras da composição das chapas apenas dois dias antes da conferência. “Como é que a gente vai compor as chapas dois dias antes, agregando tantos diferenciais: raça, idade, segment. Como é que a gente vai montar uma chapa com gente que a gente não conhece?”, desabafou a lideranca do Ibrat. Por votação por contraste, manteve-se o texto original das regras das chapas e foram formadas duas chapas.
A chapa “Bonde do rabo solto” teve 44 votos e foi defendida pelo advogado Dimitri, que declarou em seu discurso que o nome, “embora pareça jocoso, significa que temos a liberdade de falar em nome dos nossos interesses e não dos interesses da administração pública”, afirmou.
“Renovar a esperança” foi a chapa ganhadora com 118 votos, e que tinha em sua composição o maior número de travestis, mulheres transexuais e homens trans. A maior parte dos votos foram da comunidade trans que compareceu em peso à Conferência, em especial as alunas do programa Transcidadania que oferece, além das aulas tradicionais, o curso de Direitos Humanos e Cidadania. A chapa foi defendida pela bolsista do transcidadania, a travesti Aline Marques, num discurso inflamado que levantou a platéia aos gritos: “Viva as travestis, viva as travestis”.
“A gente quer a realidade, a gente quer que todas essas políticas saia do papel de uma vez por todas e venha até nós. Eu trabalhei 21 anos numa esquina e nenhuma dessas polítcas nunca me atingiu, a não ser o que está acontecendo agora.” concluiu Aline.
O coordenador municipal de políticas LGBT da cidade de são Paulo, Alessandro Melquior, pontuou em uma entrevista exclusiva para os Jornalistas Livres, que depois do lançamento do programa Transcidadania em 29 de janeiro de 2015, tem surgido uma nova articulação política mais empoderada da comunidade trans com o surgimento de três novas organizações na cidade de São Paulo: o Fórum Municipal de Travestis e Transexuais (FMTT) , o Grupo de resistência de travestis e transexuais ativistas (GRETA) e o Centro de Apoio e Inclusão de travestis e transexuais (CAIS).
“Não só a política LGBT, mas a política trans de uma maneira geral tem conquistado uma visibilidade enorme em São Paulo e isso, obviamente, tem gerado impacto positive. As trans se sentem mais valorizadas, se sentem mais emponderadas para ocupar um espaço”, diz Alessandro.
Ele avaliou também, que, apesar de todas as dificuldades estruturais, a III Conferência Municipal LGBT de São Paulo teve o mérito de ter sido a maior de toda a história de conferências desse ciclo no Brasil, com a participação de mais 450 pessoas LGBT e observadores. Além disso, ele acredita que o grande diferencial foi a mudança nos atores que sempre tiveram seu lugar de fala na militância lgbt.
“Esses novos atores que estão surgindo no movimento de travestis, principalmente as novas atrizes, estão querendo espaço e estão conquistando. Acho que o resultado da conferência é isso. Um número gigantesco de travestis e mulheres transexuais que saíram delegadas dessa conferência. Mostrando que tem muita gente nova querendo o microfone, e conseguindo. As pessoas vão ter que conviver com essa realidade”, resume Alessandro Melquior.
Com relação aos futuros desafios, Alessandro declarou que quer que as conquistas que há existem e que vão aparecer até o final desse ano passem a ser políticas de Estado, e não fiquem suscetíveis a governos. “Que os Centro de Cidadania LGBT e o programa Transcidadania possam ser leis. Assim, o próximo governo, seja ele qual for, não coloque em risco o que se conquistou. O que conseguimos na cidade de São Paulo não é patrimônio de São Paulo, é patrimônio do Brasil. “
Flavia Gianini
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