(Compromisso e Atitude, 16/03/2016) A perspectiva de gênero é fundamental para coibir a violência contra as mulheres. De acordo com defensores públicos, promotores e juízes de diferentes Estados brasileiros que atuam na aplicação da Lei Maria da Penha, para garantir os direitos das mulheres é preciso compreender e transformar as relações de poder que permeiam os papéis associados ao masculino e feminino e que estão nas raízes de diversos crimes que chegam às varas especializadas todos os dias.
De acordo com promotora de Justiça Valéria Diez Scarance Fernandes, a perspectiva de gênero é uma conquista cultural e histórica essencial para modificar o olhar sobre a violência contra as mulheres. “Para enfrentar essa violência é imprescindível compreender o que o conceito de gênero sintetiza – que é a dominação histórica e cultural a que as mulheres vêm sendo submetidas ao longo do tempo e que autorizam as violências com que lidamos diariamente. O conceito de gênero traz em si alguns elementos como a dominação, subordinação, naturalização, a repetição de comportamentos. Se hoje as mulheres são vítimas de violência é porque ao longo do tempo se aprendeu que isso é natural, que é um comportamento comum, quando não é”, enfatiza a promotora, que é a atual coordenadora-geral da Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Copevid) do Conselho Nacional do Ministério Público.
Em sentido semelhante, o juiz de Direito Ben-Hur Viza considera que a compreensão dos papéis de gênero é um requisito para a atuação nas varas e juizados de violência doméstica e familiar contra as mulheres. “É preciso fazer a ligação daquela violência que chega ao Sistema de Justiça com a questão de gênero, que está prevista na Lei Maria da Penha, apontando para os aspectos sociais e culturais desta violência. Dizer que o homem é biologicamente diferente da mulher é uma constatação, mas quando há uma violência baseada em gênero você não está discutindo uma questão física. O que estamos discutindo são aqueles papéis que a mulher vive no seu dia a dia por força da imposição da sociedade, do seu contexto de vida, e que perpetuam violências”, reforça o magistrado, titular do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Núcleo Bandeirantes do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.
Papéis construídos desde a infância legitimam violência
Para exemplificar, o juiz explica que esses papéis são construídos e naturalizados desde a infância, sendo associados ao masculino e ao feminino quando se diz, por exemplo, que um menino não pode brincar de boneca, vinculando desde cedo o papel de cuidado com filhos exclusivamente à mulher. Também está presente em afirmações sedimentadas no senso comum no Brasil, como apontar a mulher enquanto ‘a rainha do lar’. Com isso, aponta o juiz Ben-Hur Viza, “de alguma forma você delimita o espaço da mulher à casa, enquanto ao homem é oferecido tudo o que há da porta para fora. Então você entrega o mundo para o homem, e a mulher fica resumida às atividades domésticas e de cuidado”, exemplifica.
A naturalização desses papéis de modo rígido e desigual é prejudicial às mulheres, podendo se manifestar desde o acesso díspar a experiências, direitos e oportunidades, até a vulnerabilidade a determinados tipos de violência, como a doméstica e a sexual. “Toda essa construção influencia o cenário de violências que enfrentamos hoje, porque lá na frente, quando esse menino que foi criado dessa forma se deparar com uma situação em que a mulher vai para o mercado de trabalho, ele tem dificuldade de aceitar. E então nessa cultura que diz que ‘o homem é o cabeça da família’, ele entende que ele manda e o restante obedece. E ele pune quem desobedece. É mais comum do que o que se imagina, um homem achar que quando ele bate na mulher dele ele está ‘corrigindo’, como se ele tivesse um poder de disciplina e autoridade sobre a mulher que o autorizasse a puni-la, inclusive fisicamente”, aponta.
Com isso, segundo o magistrado, os juizados se deparam diariamente com inúmeros casos de maridos que prendem as mulheres em casa, não permitem que elas saiam, que determinam a roupa que devem usar, que a proíbem de trabalhar, estudar e, por vezes, até de visitar a própria família ou amigos – desenhando um cenário de violências em que a mulher fica subjugada a um contexto social e cultural onde essa violência é tolerada e, portanto, autorizada.
“Essa mulher que está sendo vítima de violência, essa mulher que está morrendo porque chegou em casa mais tarde, porque a comida queimou, porque o homem chegou em casa e o almoço não estava pronto, porque as crianças estavam sujas ou fazendo barulho, porque ela decidiu se separar ou se envolveu com outra pessoa, todas essas mulheres são vitimas da violência de gênero. Então, os agentes do Estado precisam ter esse olhar de gênero para dar uma proteção efetiva às mulheres, porque, caso contrário, essa violência continuará banalizada e, com isso, continuam os milhares de feminicídios e toda essa série de barbaridades perpetradas contra as mulheres”, reforça o juiz Ben-Hur Viza.
Vale lembrar que o Brasil ocupa a 5ª posição na lista de países com as maiores taxas de homicídio de mulheres, atrás apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e da Federação Russa, conforme apontou o Mapa da Violência 2015. O Mapa revelou ainda que, dos 4.762 assassinatos de mulheres registrados em 2013 no Brasil, 50,3% foram cometidos por familiares, sendo que em 33,2% destes casos o crime foi praticado pelo parceiro ou ex. Essas quase 5 mil mortes representam 13 homicídios femininos diários em 2013.
Gênero nas políticas públicas
Diante da importância da perspectiva de gênero para coibir a violência contra as mulheres, os operadores do Direito reforçam a importância desta abordagem não só para o sistema de justiça, mas também para a efetivação de políticas públicas.
Para a juíza de Direito Madgéli Frantz Machado, uma vez que a própria Lei Maria da Penha trouxe o conceito de gênero, os operadores do Direito devem se apropriar dele. “É importante trabalharmos sempre com a perspectiva de gênero, refletindo, trazendo para o diálogo, não só dentro do sistema de justiça, mas da sociedade como um todo, para desconstruir essa realidade, para mostrar que existe essa desigualdade e há violências graves acontecendo todos os dias em decorrência dessa construção social e cultural desigual”, avalia a magistrada, atual presidente do Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Fonavid).
No texto da Lei, é considerada violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.
Na perspectiva do defensor público do Espírito Santo Ronan Ferreira Figueira, dado que a perspectiva de gênero está na Lei, todo sistema de justiça precisa avançar e compreender de modo aprofundado o que são essas questões de gênero. “Precisamos compreender o que é gênero, o que a Lei quer dizer com violência de gênero, qual é a situação dessa mulher enquanto vítima de violência de gênero. E também unir vozes para impedir esses retrocessos que temos visto quando se tenta extirpar o gênero das políticas públicas para efetivação dos direitos das mulheres, da educação”, destaca.
Nesse sentido, segundo a atual coordenadora da Comissão de Proteção e Defesa dos Direitos da Mulher do Colégio Nacional de Defensores Públicos-Gerais (Condege) – a defensora pública Ana Paula de Oliveira Castro Meirelles Lewin – a Comissão irá mandar moções de apoio à manutenção da perspectiva de gênero em campos considerados essenciais para a garantia dos direitos das mulheres, como nas atribuições do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (saiba mais) e no campo da educação, por exemplo, na cidade do Rio de Janeiro. “Tirar a perspectiva de gênero do Ministério ou dos planos de educação só traz prejuízos para as mulheres que atendemos na Defensoria. Então o colegiado decidiu mandar moções de apoio que, na verdade, são nosso repúdio às parcelas do Legislativo que tentam minar a possibilidade de se discutir e promover relações de gênero mais iguais no Brasil”.
Os defensores, promotores e juízes participaram da primeira edição dos “Diálogos no Sistema de Justiça para o Enfrentamento à Violência contra as Mulheres” – um encontro inédito que reuniu cerca de 60 operadores do Direito que trabalham na aplicação diária da Lei Maria da Penha para debater o enfrentamento à violência contra as mulheres e compartilhar informações e práticas que fortaleçam a efetivação de direitos. O evento foi realizado no dia 26 de fevereiro em Brasília (DF).
Débora Prado
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