(El País, 27/03/2016) A escritora nigeriana denuncia a ascensão de Donald Trump e o sexismo na campanha presidencial. “A tecnologia nos deu opções, é preciso perguntar por que não é usada”
Chimamanda Ngozi Adichie (Enugu, Nigéria, 1977) relembra a época de sua cirurgia de apendicite, quando tinha uns 10 anos, como dias de febre escritora, nos quais devorava os cadernos em um abrir e fechar de olhos. Criada na Nigéria e hoje radicada na cidade norte-americana de Colúmbia (Maryland), começou muito cedo a ler e criar histórias, com personagens que tinham nome em inglês apesar de viverem na Nigéria, porque assim eram os personagens que lia. Os romances Hibisco roxo e Meio sol amarelo (editados no Brasil pela Companhia das Letras) e os contos reunidos em The thing around your neck (ainda não publicado no Brasil) seriam seguidos por Americanah, em 2013, que lhe valeu o prêmio dos críticos nos Estados Unidos. Se há um fio condutor em sua obra é a Nigéria e a negação da história única, que é como Chimamanda chama o que seria o pensamento único, o estereótipo dominante, a versão única das coisas.
PERGUNTA. A protagonista de Americanah não se dá conta de que é negra até que se muda para os Estados Unidos. A raça, para ela, não é uma questão até que nota que é tratada de forma diferente. É algo que também aconteceu com você?
RESPOSTA. Sim, quando morava na Nigéria nunca pensei em mim mesma como negra, não foi necessário, porque quase todo mundo era negro. Cresci pensando em mim mesma como igbo [etnia nigeriana] ou como católica…, mas nunca como negra. E isso não significa que, ao me olhar no espelho, não visse que minha pele era cor de chocolate, uma coisa de que gosto muito, mas que eu não atribuía um valor a isso. Mas, ao chegar aqui, me dei conta de que nos EUA sim, isso tem um valor, e as pessoas assumem certas coisas sobre você apenas pela cor da pele. Achei muito curioso, e também incômodo, ver que as pessoas negras não eram consideradas inteligentes.
P. E tomar consciência dessa identidade lhe trouxe algo positivo?
R. Tornar-me negra foi um processo e agora estou muito feliz com isso. Meus amigos na Nigéria não se identificam como negros porque não precisam disso. Quando voltar para lá em duas semanas, assim que puser os pés em Lagos, me esquecerei da raça, não pensarei nisso, e de volta aos EUA sentirei um certo orgulho da história da comunidade afro-americana daqui. Não faço parte, mas me identifico com eles. Quando cheguei aos EUA, um afro-americano me surpreendeu ao me chamar de “irmã”. Lembro-me de pensar: “Eu não sou sua irmã”. Mas se isso acontece agora, penso: “Sim!”.
P. Viver nos EUA mudou sua percepção da Nigéria, do que acontece lá?
R. Nunca estive muito distante da Nigéria. Preciso ir de vez em quando coletar material, ainda que não de forma direta, mas depois é necessário tomar distância para processar tudo. Eu não saí da Nigéria, não me sinto uma imigrante da Nigéria. E este nível tremendo de globalização e tecnologia faz com que esteja conectada, porque recebo mensagens de minha família todo dia, vejo na televisão, vivo nos dois mundos de forma simultânea.
P. Você alertou sobre o perigo da história única, do risco de ver as coisas de um único prisma, sob um estereótipo dominante. A globalização, a tecnologia, deveriam ajudar a combater essa história única, especialmente no que se refere à visão da África. Você acha que isso acontece?
R. É verdade, em parte. A tecnologia nos deu opções, podemos nos perguntar por que as pessoas não usam. Se alguém quiser, hoje mesmo pode ler os jornais da Nigéria em inglês. Mas, ao mesmo tempo, a tecnologia também lhe permite assinar apenas as notícias de futebol, por exemplo, e isso é tudo o que chega a você. A tecnologia, portanto, não resolveu o problema da história única e não tenho claro que o faça. Posso estar em contato com minha família em Lagos instantaneamente com uma mensagem e posso enviar dinheiro pelo celular. Mas mesmo hoje acho que 90% da cobertura sobre a África é ainda a mesma…
P. Em relação à Nigéria, recebemos notícias sobre o Boko Haram o tempo todo. Você era capaz de imaginar algo tão atroz?
R. O Boko Haram é algo que não consigo entender, nem os nigerianos entendem. Ocorreu longe, no norte, e nós, no sul, não é que não sintamos o horror, mas há uma distância. Mesmo assim, afeta as pessoas da Nigéria. Quando meus pais vão à igreja, deixam o carro afastado a mais de um quilômetro porque têm medo das bombas. Nunca aconteceu nada. E as mulheres não podem entrar na igreja usando bolsas. É muito triste, e acho que nenhum Governo está tratando muito bem a questão do terrorismo. Por exemplo, vi no noticiário que não se vendem armas à Nigéria porque seu Exército cometeu violações dos direitos humanos. E aconteceu, mas também pensei que, se não se vendem armas ao Governo da Nigéria, como ele vai enfrentar o Boko Haram?
P. Sua literatura tenta lutar contra a história única ou simplesmente acontece?
R. Só tento contar a história do que sei. E se você conta uma história de forma sincera e honesta, automaticamente evita a história única, encontra o bom e o ruim, a humanidade. A maior parte da cobertura sobre o meu país se baseia na pobreza ou na guerra, e essa não é a minha experiência, então quando escrevo dizem: “Olha, isso é diferente”. Mas não é intencional.
P. Sua fala no TEDTalk, Todos deveriam ser feministas [All should be feminist] se tornou um livro. O que acontece com a palavra feminista? “Não sou feminista, só quero igualdade” – esta frase pode ser ouvida da boca de mulheres jovens. É um problema com o termo, por não se entender seu significado, ou vai além disso?
R. Não sei, mas sei que quero mudar isso. Há um problema com a palavra, mas também com a ideia. Realmente penso que minha geração de mulheres é, em muitos casos, mais conservadora em termos de ideias de gênero do que outras. Há meninas de vinte anos na Nigéria com bons empregos obcecadas por casar, que aceitam ser descritas por sua capacidade de encontrar um homem e se casar. Sou muito romântica e acredito que o amor é lindo, mas também que isso não deve definir uma mulher.
A vida foi mais fácil para nós do que para nossas mães. Eu cresci em um mundo em que era normal ir à escola, mas que minha mãe fosse era considerado jogar dinheiro fora. Então acredito que as jovens pensam que não precisam ser feministas, dizem: “Quero direitos para todos”, que é exatamente o que significa feminismo… Ou também dizem: “E o que acontece com os homens? Não quero discriminar os homens…”. Uma vez, durante uma entrevista na Nigéria, me perguntaram: “Quando você vai fazer o que realmente importa para uma mulher que é se casar?”.
P. É difícil perguntarem isso nos EUA, mas você acredita que continua havendo um problema de sexismo? Vê isso na campanha? Compartilha a ideia de que Hillary Clinton recebe ataques sexistas às vezes?
R. Sim. Ontem [11 de fevereiro], no debate, foi interessante como Bernie Sanders (rival de Hillary Clinton nas primárias democratas) manteve o dedo indicador levantado o tempo todo. Não posso evitar de pensar que, se ela tivesse feito isso, seus números nas pesquisas teriam caído, porque se você é mulher supõe-se que não deve fazer isso. Acredito que boa parte da cobertura sobre ela é muito sexista, não só por parte dos republicanos, mas também dos democratas. Acho que se Hillary, com todas as suas conquistas e experiência, se fosse homem, não estaríamos tendo muitas dessas conversas quanto à sua integridade.
P. E quando você vê a ascensão do candidato Donald Trump [a entrevista aconteceu depois da folgada vitória do empresário nas primárias de New Hampshire], o que acha que está acontecendo neste país? Por que há tanta raiva?
R. Não sei, não há motivos para essa raiva. Venho da Nigéria, lá temos motivos para estar com raiva. Os EUA tiveram por oito anos um presidente inteligente que, apesar do Congresso horrível com o qual teve de lidar, aprovou políticas úteis para a população, a economia vai bem, o emprego cresce… E as pessoas estão tão raivosas a ponto de votar em um homem como Donald Trump, que não só é sexista e racista, mas que não parece ser fiel a nada. Vivo há 15 anos nos EUA e não entendo. Posso entender as pessoas que votam em candidatos religiosos; não compartilho, mas entendo. Também em quem vota em candidatos da classe trabalhadora. Mas não em Trump, porque é alguém que insulta todo mundo, que ostenta sua riqueza… E nos EUA não se tolera essas coisas, é um país muito rico no qual se acredita que você deve viver como se não fosse, aqui todo mundo se considera de classe média… E de repente você vê trabalhadores votando em Trump! É muito estranho.
P. O socialista Bernie Sanders também atraiu um voto raivoso das classes trabalhadoras.
R. A raiva de Sanders é diferente da de Trump. A de Sanders tem a ver com injustiça econômica e a de Trump é mais no sentido de “deveríamos ser os melhores desse mundo maldito e não somos por culpa dos mexicanos e dos muçulmanos…”.
Amanda Mars
Acesse no site de origem: Chimamanda Ngozi: “Não há motivos para tanta raiva nos Estados Unidos” (El País, 27/03/2016)