(Carta Capital, 06/04/2016) A inspiradora história do início de carreira de Octavia Butler, primeira autora negra de ficção científica a ser reconhecida mundialmente
Esta história começa com uma criança de 12 anos na frente da TV. Apesar de vir à mente a imagem de uma criança da minha geração assistindo à programação da tarde na TV Manchete, esta história é ainda mais antiga: estamos de volta à década de 50, numa modesta sala de estar de uma família da Califórnia.
Era a jovem Octavia na frente da televisão. Ela assistia a um filme de ficção científica sobre uma mulher demoníaca (claro!) vinda de Marte para aterrorizar os terráqueos. Devil Girl from Mars. Mas ela não parecia impressionada.
“Nossa, consigo fácil escrever uma história melhor que essa”, ela teria pensado.
O que isso pode ter de tão marcante? Bem, Octavia Estelle Butler era uma garota negra, filha de uma doméstica e de um engraxate. A esta altura, ela já era criada apenas pela mãe, pois seu pai faleceu quando ela tinha sete anos.
As dificuldades de sua infância não foram um impeditivo para ela se interessar pela leitura e pela escrita. A mãe, mesmo podendo tão pouco, arrumava um jeitinho de incentivá-la: trazia revistas e livros velhos descartados pelas famílias brancas para quem trabalhava.
Não demorou para Octavia se interessar por revistas de ficção científica e fantasia. E ter repertório o suficiente para acreditar que sim, podia escrever algo tão bom ou melhor do que as coisas que lia.
“Querida, negros não podem ser escritores”, ela ouviu de uma bem-intencionada tia, que apenas repetia o que anos de segregação racial haviam lhe ensinado. Negros não podem isso, negros não podem aquilo. Negros não podem.
Mas Octavia teimou. Não queria nem saber, iria escrever.
As histórias que Octavia criava em sua imaginação também pertenciam a um gênero literário não só dominado por brancos, mas por homens. Mesmo assim, Octavia pensava em histórias em que a mulher assumiria papéis importantes.
“Ah, mas eu vou escrever um livro de ficção científica sim, e se reclamar, escrevo dois”, é o que gosto de imaginar que Octavia tenha dito, mas na verdade, ela fez bem mais.
Octavia trabalhava de dia e fazia faculdade à noite, até se formar em 1968. Continuou a escrever, dividindo sua rotina entre empregos temporários e escrita. Depois de seu livro Kindred, publicado em 1979, ela passou a se dedicar integralmente ao trabalho de escritora.
Kindred é sobre a história de Dana, uma mulher que de repente, sem nenhuma explicação e por sucessivas vezes, volta no tempo para os EUA do início do século XIX, tragada sempre por situações em que um garotinho corre risco de morrer e ela é a única que pode salvá-lo.
O que Dana descobre é que esse garotinho é seu ancestral e sua própria existência passa a depender da garantia que ele sobreviva. Um detalhe: Dana é uma mulher negra que vive nos anos 70. O garoto é um sinhôzinho branco do tempo da escravidão americana.
As histórias de Octavia, além de trazer pessoas negras como protagonistas, também colocavam questões de raça e gênero no centro dos conflitos.
Entre distopias, viagens no tempo, aliens e seres humanos geneticamente modificados, Octavia trazia para seus livros questionamentos sobre a própria humanidade. Ela buscava confrontar a figura de seres “superiores” (super-humanos, aliens ou até senhores de escravos) com personagens que representavam a diversidade e a mudança.
Mas Octavia estava escrevendo bem mais que suas histórias. Estava escrevendo um capítulo importante na própria vida – e na vida das pessoas que viria a influenciar.
Ela não apenas sabia disso, quanto era algo que ativamente buscava. Em um de seus cadernos, que usava para rascunhar ideias e personagens, Octavia escreveu para si mesma, como uma espécie de lembrete ou meta:
“Eu terei que ser uma escritora de sucesso. Meus livros irão para listas de mais vendidos, quer as editoras se esforcem ou não, quer eu receba adiantamento ou não, quer eu ganhe outro prêmio ou não. Então que seja! Eu encontrarei o caminho para fazer isso acontecer. Meus livros serão lidos por millhões de pessoas! Comprarei uma bela casa em um bairro bacana. Eu mandarei jovens negros e pobres para cursos de escrita. Ajudarei jovens negros e pobres a ampliar seus horizontes. Ajudarei jovens negros e pobres a entrarem para a faculdade. Então que seja!”
Tal como sua personagem Dana, avancemos no tempo. Estamos de volta a 2016, e a garotinha do início desta história já não existe mais; morreu em 2006, com 58 anos.
A carta acima, um eco poderoso de sua voz, foi encontrada em meio aos arquivos e documentos da escritora, hoje pertencentes ao acervo da Biblioteca de Huntington.
Mas Octavia deixou bem mais para o nosso tempo. Escreveu 15 livros. Diversos contos e ensaios. Firmou-se como uma grande referência do movimento cultural afrofuturista. Ganhou diversos prêmios, entre eles, Hugo Award e Nebula Award.
Além de histórias fantásticas, Octavia Butler deixou uma trajetória inspiradora, tanto para fãs e autores de ficção especulativa, quanto para jovens até os dias de hoje. Ela mostrou que mundos antes inimagináveis eram possíveis, principalmente o mundo em que uma mulher negra pode ser escritora sim, e das boas.
A garotinha que decidiu escrever uma história sobre aliens melhor do que a da TV e a escritora que decidiu ser lida por milhões foram tão obstinadas que escreveram com força seu nome na história da literatura. Com força, para que outros mundos e futuros – inclusive os nossos – possam se lembrar de seu nome: Octavia.
“Comecei a escrever sobre poder porque era algo que eu tinha muito pouco” Octavia E. Butler.
Apesar de sua relevância e reconhecimento internacional no campo da ficção científica, Octavia Butler ainda não foi traduzida nem publicada no Brasil.
Alô, editoras: vamos providenciar a publicação dos livros dela no Brasil? Obrigadinha.
Fica aí a dica. Ou melhor: o apelo.
Aline Valek
Acesse no site de origem: Octavia Butler, a mulher com o poder de escrever o futuro (Carta Capital, 06/04/2016)