‘Para polícia, favelado é lixo’, diz moradora da Maré sobre violência

13 de abril, 2016

(Folha de S. Paulo, 13/04/2016) “Polícia aqui não é sinônimo de paz”, resume Marinalva Florêncio dos Santos, 54, moradora do Complexo da Maré, o maior conjunto de favelas do Rio de Janeiro.

Para entender como lidar com as forças policiais e até com o Exército, convocados pelo Estado para travar a “guerra contra o tráfico” na área, ela se matriculou no curso “Maré de Direitos”, oferecido pela Redes da Maré, Oscip que desenvolve projetos em áreas como educação e segurança pública.

A organização foi fundada por Eliana Sousa Silva, finalista do Prêmio Empreendedor Social 2015.

Os prêmios Empreendedor Social e Folha Empreendedor Social de Futuro já estão com as inscrições abertas; participe

“Aprendi que ser mulher era muito mais que ser dona de casa, ser submissa a marido, me fazer respeitar. Eu tenho direito a dizer não. O corpo é meu”, diz Marinalva.

Com a mesma altivez, ela defende a inviolabilidade do seu lar, passando a exigir mandados para que um policial entre em sua casa, por exemplo.

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Comecei a fazer em 2013, a convite de conhecidos, o curso Maré de Direitos, só para mulheres. Foi uma das coisas mais maravilhosas que me aconteceu.

Aprendi que ser mulher era muito mais que ser dona de casa, ser submissa a marido, me fazer respeitar. Eu tenho direito a dizer não. O corpo é meu.

Minha luta na Maré começa por mim porque não adianta querer lutar por outro se eu não tiver legal. No momento, essa luta é contra a ditadura dos governos. A gente está na democracia, mas eles não sabem disso.

Tomaram a decisão dentro da favela –eu não gosto da palavra comunidade, é cheia de inverdades, então é favela– de tirar as crianças menores, do ensino fundamental I, e colocar em um lugar onde existem várias facções.

Conversando com as diretoras, fizemos um abaixo-assinado para impedir que isso aconteça. Falei para o vereador: ‘Favelado não é burro, não é idiota, não é ignorante. Eu me recuso a aceitar tirar meu neto daqui e colocar na boca do inferno, na Faixa de Gaza’.

Eu sou direta. Acho que palavras bonitas são para político. Político chega na televisão e fala: ‘Senhores, bom dia. Permita-me entrar em vossas casas’ e começam com aqueles substantivos, adjetivos, que o povo não entende.

Não estou lutando só por mim. É pelo direito a permanência das crianças na escola. É uma conquista.

PACIFICAÇÃO

Onde que a pacificação está dando certo? Polícia não é sinônimo de paz. Nunca foi e nunca vai ser. É a força maior do Estado. Na zona sul, eles chegam: ‘Com licença, doutor’

A última vez que eles bateram aqui, perguntaram assim: ‘Quem mora aqui?’ Eu respondi: ‘Meus vizinhos’. Sou sarcástica quando quero ser. ‘Eles trabalham?’ Eu disse que sim. ‘Aqui neste beco só mora trabalhador. Bandido, não aceito aqui não.’

E aí perguntei para o policial: ‘O senhor vai entrar? Se tiver um mandado de busca e apreensão, fique à vontade. Se não tiver, peço que o senhor, por favor, pegue esse mandado e traga para mim.’

Porque o mandado geral para a favela não pode incluir minha casa. A minha casa não é a favela, a favela não mora na minha casa.

Aprendi a agir dessa forma depois que comecei a fazer esse curso na Maré. Já passei sufoco aqui dentro.

Eles subiram e começaram a espancar uns caras. Falei: ‘Pera aí, amigo, Na minha casa não.’ O policial só não me chamou de Bruna Lombardi. Do resto que você possa imaginar, ele me chamou.

Coloquei um cartaz na porta de casa: ‘Conhecemos nossos direitos’. Isso já assusta o policial. ‘Pô, favelado conhece os direitos, caraca.’ Na cartilha do curso está escrito: ‘Não entre nessa casa sem respeitar a legalidade da ação. Em caso de desrespeito, ligue para a corregedoria da Polícia Militar’.

Se você levar um tapa na cara de um policial, vai ficar por isso mesmo? Que policial foi punido severamente por invadir a casa do morador ilegalmente?

Esse tipo de campanha é importante para que você saiba que tem seus direitos, que entrar em uma residência sem mandado judicial é ilegal. Mas isso não me tirou o medo porque não acredito na corregedoria. Será que se eu denunciar, vai acontecer alguma coisa?

O MENOR DOS MALES

O traficante aqui é o cara. O tráfico não te incomoda. Claro que tenho mais medo do policial. Para a polícia, favelado é lixo. Para político também.

O policial ganha uma miséria e vem aqui enfrentar um poder de fogo maior do que o dele. Antigamente era traficante com metralhadora e polícia com revólver. Agora melhorou um pouquinho.

Tem que pagar bem o policial, treinar bem, ensinar: Não pode ser assim: ‘Quando você for abordar o pessoal no asfalto, é uma coisa, mas na favela, é outra.’ Nem achar que o filhinho do bacana fumando maconha é doente, enquanto aqui o cara é viciado.

A ocupação da Maré pelo Exército foi para o governo gastar bastante dinheiro e ter uma justificativa. ‘Nós estamos gastando com a segurança pública.’ O Exército veio por causa das Olimpíadas, da Copa. Não veio para proteger aqui.

Coitados dos periquitos verdes. Foram tripudiados aqui. Não têm poder de fogo. O morador começa a jogar garrafa no Exército, eles não podem fazer nada, não podem atirar em você. Ninguém faz isso com a Polícia Militar, com a Federal.

O sistema está todo errado.

Acesse o PDF: ‘Para polícia, favelado é lixo’, diz moradora da Maré sobre violência (Folha de S. Paulo, 13/04/2016)

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