(Folha de S. paulo, 01/05/2016) Quando tinha 13 anos, em 1987, Ana L. viu na TV o comercial de uma menina mais ou menos da sua idade provando um sutiã. “Foi aí que conversei lá em casa e me deixaram começar a usar”, diz ela, hoje uma psicóloga de 41 anos de idade.
A história se repetiu quase 30 anos depois, só que um pouco antes do que esperava: estava numa loja de shopping comprando lingerie com a filha, de 7 anos, quando ouviu o pedido: “Compra um para mim, mãe?”.
A menina tinha na mão uma peça do seu tamanho. Com um bojo imitando volume na parte frontal.
A Valisere, uma das maiores fabricantes de roupa de baixo do país, passou a vender nas últimas semanas um sutiã com bojo para adolescentes, pré-adolescentes e crianças. É o caso da peça retratada em dimensão real na foto desta página: um sutiã tamanho PP com bojo removível, que veste uma menina de seis anos.
Enquanto Ana L., que pediu para ter seu sobrenome suprimido, ficou “ultrajada” com a existência do produto, que custa R$ 72, outros pais viram a peça com naturalidade. “Comprei para a minha filha um sem bojinho, mas, se ela quisesse o com enchimento, teria dado”, disse o analista de sistemas Carlos Silva, 32, que estava no shopping Villa Lobos com a família.
Especialistas em crescimento analisam a função da peça. “Se você estimula uma criança de seis anos a usar sutiã com peitinho, você a transforma numa adolescente, que já está caminhando para se transformar em mulher”, diz a terapeuta sexual Sandra Vasques, consultora do Instituto Kaplan. “Pode haver olhares como se ela fosse uma mulher, ela não vai saber lidar com isso.”
Vasques afirma não ver problema em crianças que quererem imitar adultos. “Sendo uma brincadeira, uma coisa lúdica, é justificável. Se for para brincar com as amiguinhas dentro de casa, não vejo problema.”
Mas o produto parece ser concebido para uso rotineiro. A vendedora da loja do shopping Higienópolis, na região central de São Paulo, onde o repórter comprou uma peça, ainda aconselhou: “Não leva o preto. Leva o lilás porque marca menos na camisetinha da escola, que costuma ser branca”.
“Se você cria um produto de vestuário, saiu dessa lógica do lúdico. Não dá para alegar que a criança imita a mãe, ela imitaria improvisando ou usando o sutiã da própria mãe, em casa”, afirma Maria da Graça Gonçalves, professora de psicologia social da PUC de São Paulo.
“É quase sem escrúpulos explorar qualquer espaço de consumo, estendendo à criança valores que são mal resolvidos na sociedade, como o lidar com o corpo feminino”, diz a professora.
POSICIONAMENTO
A Valisere afirma que a linha Meu Primeiro Valisere se destina a meninas com nove anos ou mais. A empresa afirma ainda que não utiliza enchimento nos sutiãs, “mas sim uma manta de cobertura, sem aro de sustentação, justamente para atender a esse público que está em período de transição e desenvolvimento do corpo”.
A companhia afirma nunca ter recebido nenhum tipo de reclamação do produto, “que inclusive é bem aceito pelos consumidores e pelo mercado”.
Outras grandes marcas, como a Renner, também oferecem sutiãs para crianças a partir de oito anos, em modelos sem bojo.
Em 2011, a Folha noticiou que as lojas Pernambucanas vendiam sutiãs com bojo e estampas de personagens dos desenhos da Disney, em tamanhos a partir de seis anos.
A terapeuta Sandra Vasques afirma que, havendo demanda, o mercado vai supri-la, e deixa um conselho para os pais. “A pergunta fica por conta de mãe e de pai: para que dar um sutiã para meninas de seis, sete anos? Não é a criança que tem de decidir.”
Chico Felitti
Acesse o PDF: Marca de lingerie revive campanha voltada para crianças e gera queixas (Folha de S. Paulo, 01/05/2016)