(O Estado de S. Paulo) No âmbito da polêmica suscitada pelas declarações dos deputados federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) e Marco Feliciano (PSC-SP), o escritor Marcelo Rubens Paiva trouxe para sua coluna no Estadão alguns dados impactantes que comprovam a discriminação racial que impera no país, em especial no campo da saúde pública. Vale a pena ler esse artigo na íntegra:
“As grosserias do deputado Bolsonaro (PP-RJ), representante e sobrevivente da extrema-direita brasileira, e a confusão bíblica do seu colega pastor Marco Feliciano (PSC-SP) – que tuitou que “africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé”, e que “a África sofre com a maldição do paganismo, ocultismo, misérias, doenças oriundas de lá: ebola, aids” – só foram feitas porque há “proteção” do foro privilegiado e a deturpação do seu sentido. Ele garante o exercício da livre expressão, mas não o direito de incitar o preconceito e a intolerância.
O racismo no Brasil existe e, pior, é um caso de saúde pública, segundo dados publicados por Maria do Carmo Leal, Silvana Granado Nogueira da Gama e Cynthia Braga da Cunha na Revista de Saúde Pública da USP. O debate sobre as desigualdades raciais e suas consequências na saúde é recente. Foi só no fim dos anos 90 que começou a coleta de informação sobre a cor da pele na declaração de óbito e nascido vivo, graças a uma portaria de 1999. Então, a inclusão do campo raça/cor com os atributos adotados pelo IBGE entrou no sistema de dados do Ministério da Saúde.
O que se descobriu foi que os piores indicadores de mortalidade materna no parto são apresentados por mães pretas: cerca de sete vezes maior (275 por 100 mil nascidos vivos) do que entre mulheres brancas (43 por 100 mil nascidos). Pretos e pardos morrem cerca de duas vezes mais por agressões do que brancos: 136, 111, e 72 por 100 mil habitantes respectivamente.
No perfil de mortalidade nos homens pretos entre 40 e 69 anos, doenças cerebrovasculares predominam, mais associadas à pobreza em períodos precoces da vida, do que doenças do coração, que representam a primeira causa de óbito entre brancos.
Nas mulheres pretas entre 40 e 69 anos, a taxa de mortalidade por doenças cerebrovasculares (115 por 100 mil) é cerca de duas vezes maior do que entre brancas (58 por 100 mil). A mortalidade por doença hipertensiva e por diabetes é muito mais expressiva entre as mulheres pretas.
No parto, as mulheres de cor preta e parda são majoritariamente atendidas em estabelecimentos públicos, 58,9% e 46,9%, e nas maternidades conveniadas com o SUS, 29,6% e 32,0%. As brancas, ao contrário, quase a metade, 43,7%, tiveram seus partos realizados em maternidades privadas.
Foi elevada a proporção de mulheres pardas e negras que não conseguiram receber assistência na primeira maternidade procurada. A peregrinação em busca de atendimento foi de 31,8% entre as negras, e 18,5% nas brancas.
A anestesia foi amplamente utilizada para o parto vaginal nos dois grupos. Porém, a proporção de puérperas que não tiveram acesso a esse procedimento foi maior entre as pardas, 16,4% e negras, 21,8%. No momento do parto, foram mais penalizadas por não serem aceitas na primeira maternidade que procuraram e, incrivelmente, receberam menos anestesia.
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Entre numa agência bancária privada e repare como os atendentes parecem saídos de uma mesma forma. São magros, simpáticos, com sorriso digno de anúncio de pasta de dente, razoavelmente bem vestidos e, na maioria, brancos.
Entre numa agência do Banco do Brasil ou Caixa Econômica. Não seguem um padrão estético. Atrás do balcão circulam velhos, gordos, negros com tranças, pessoas bonitas ou não. “Gosto de vir aqui porque vejo pessoas normais”, eu disse à gerente do BB.
Na primeira leva de empresas, a contratação é feita após uma entrevista, em que o contato visual é estabelecido por um departamento de RH. Há o filtro da forma paralelo ao da competência. Na leva de empresas públicas, a contratação é automatizada por um concurso, que dá invisibilidade ao funcionário. O conhecimento, o acerto das questões, traduzido por competência, leva à contratação.
A licença poética de que “beleza é fundamental” se transformou numa norma empresarial endêmica. Outro teste? Repare nas estagiárias contratadas por qualquer empresa do mercado corporativo. Como o trabalho é por um período temporário, elas podem ser gatinhas e gostosas, que se relevam as habilidades. Todos os escritórios têm uma. Entre numa loja de roupas. Atente aos comissários de bordo. Garçom negro? Nem pensar. Garçom gordo? Jamais!
Ligue a TV e veja apresentadoras ou repórteres de telejornal. O gordo na tela de TV ou é humorista ou animador de programa de auditório. Muitos são ainda pressionados a fazer operações arriscadas de redução de estômago em Minas. Há exceções. Mas parece evidente que se prioriza o olhar, não o ouvido, para o bom andamento das relações trabalhistas. Nos transformamos numa sociedade que, além de racista, é obcecada pela beleza e barriga tanquinho.
Leo Jaime foi mais longe. “Gordo é o novo preto”, escreveu no seu blog, inspirado no manifesto americano “Fat is the new black”: “Ao longo dos anos ouvi, e ainda ouço, inúmeros “nãos” profissionais com a justificativa de que minha aparência não é boa, preciso perder peso, pareço decadente, etc”.
“Passei 18 anos sem gravar um CD com minhas composições e percebi que ninguém se interessava em sequer ouvir as novas canções. Embora eu já tivesse emplacado várias no nosso cancioneiro, parecia que estava claro para todo mundo que a minha barriga tinha substituído o meu talento.”
Leo ainda lembra que o preconceito contra os gordos é o único tolerado hoje em dia. “Todos são ou vão ser gordos, ou gostar de um gordo, ou admirar um gordo, ou ter prazer com um, seja em que nível for. Conviva com esta ideia, amigo ou amiga. Não são os bonitos os que vão dar prazer, mas aqueles que querem dar prazer e vão se esforçar para que você se dê conta disto. E, acredite, portadores de deficiências, magrinhos, carecas, altos, baixos, estão todos no páreo.”
Acesse em pdf: Mulheres negras recebem menos anestesia, por Marcelo Rubens Paiva (O Estado de S. Paulo – 09/04/2011)