(UOL, 14/05/2016) Cerca de 200 milhões de mulheres e meninas em todo o mundo já foram vítimas de mutilação genital.
Muitos se perguntam como é viver com esse tipo de mutilação, passando por situações como urinar, menstruar ou ter um filho.
“A primeira vez que você nota que seu físico mudou é quando você faz xixi”, diz a somali Hibo Wardere, de 46 anos.
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Hibo tinha apenas seis anos quando foi submetida ao que a OMS (Organização Mundial da Saúde) classifica como mutilação “tipo 3”.
Nesse tipo de procedimento, os lábios vaginais são cortados e costurados, sendo reduzidos a apenas um buraco minúsculo que Hibo compara ao tamanho de um palito de fósforo. O clitóris também é removido.
Ela cresceu na Somália, onde 98% das mulheres entre 15 e 49 anos foram submetidas à mutilação genital.
‘Ferida aberta’
“Uma ferida aberta na qual esfregaram sal ou pimenta ─ era isso que parecia”, é como Hibo descreve a sensação ao urinar.
“Então você percebe que a urina não está saindo da forma como costumava sair. Sai em gotinhas e cada gota é pior do que a anterior. Todo o processo dura quatro ou cinco minutos, mas a dor é horrível.”
Hibo mudou-se para o Reino Unido quando tinha 18 anos e, meses depois de chegar, foi a um médico para tentar atenuar o problema.
Sem saber falar inglês, Hibo recorreu a um tradutor, que se negou a traduzir o que ela dizia. Mesmo assim, o médico conseguiu entendê-la.
Hibo então passou por uma cirurgia chamada defibulação, que amplia a abertura vaginal.
A solução não é definitiva, tampouco restaura a sensibilidade do órgão. Mas, segundo Hibo, o procedimento aliviou as dores que sentia ao urinar.
Bloqueio e trauma
Sexo também era um obstáculo, afirma ela.
“Mesmo se o médico abriu você, o que sobrou é um espaço minúsculo”, relata.
“O que deveria se expandir já não está mais lá. Então o buraco que você tem é muito pequeno e sexo é muito difícil. Você tem prazeres mas é muito raro.”
O trauma da mutilação também dificulta a vida de Hibo.
“Primeiro você tem um bloqueio psicológico porque a única coisa que você associa com aquela parte de você é a dor”, conta.
“A outra parte é o trauma que você passou. Então qualquer coisa que esteja acontecendo lá embaixo você não vê como algo bom”, acrescenta.
Números divulgados em fevereiro deste ano pela Unicef, o Fundo das Nações Unidas para a Infância, estimaram em 200 milhões o total de mulheres vítimas de mutilação genital em todo o mundo. Indonésia, Egito e Etiópia concentram metade das vítimas.
No Reino Unido, a mutilação genital feminina foi proibida desde 2003. Em 2015, o governo introduziu uma nova lei exigindo que profissionais de saúde denunciem à polícia casos da mutilação em menores de 18 anos.
Ativistas e polícia estão alertando a população sobre o risco de estudantes britânicas estarem sendo levadas para fora do país especificamente para serem submetidas à mutilação.
Trata-se da chamada “temporada de corte”, que ocorre normalmente no meio do ano (durante as férias escolares).
Pouca informação
Pouco se sabe sobre como as sobreviventes da mutilação enfrentam as sequelas deixadas pelo procedimento.
São amplas as consequências de uma mutilação que em alguns casos envolve a remoção do clitóris (tipo 1), a remoção do clitóris e dos pequenos lábios (tipo 2), remoção dos pequenos e grandes lábios e um estreitamento da abertura vaginal, geralmente, como no caso de Hibo, com a remoção do clitóris também (tipo 3), ou qualquer tipo de mutilação genital (algumas vezes chamadas de tipo 4).
Os sintomas não são discutidos abertamente.
Segundo Janet Fyle, conselheira de políticas para o Royal College of Midwives, especializado em obstetrícia, isso acontece, em parte, porque a mutilação genital feminina é tão normal em algumas comunidades que as mulheres não encaram como um problema.
Além disso, elas não associam as várias complicações de saúde que têm com o procedimento a que se submeteram na infância, acrescenta Fyle.
A rotina para as sobreviventes pode ser triste. De acordo com o NHS, o SUS britânico, essas mulheres ficam mais suscetíveis a infecções urinárias, infecções uterinas, infecções renais, cistos, problemas de fertilidade e dor durante relações sexuais são apenas algumas das consequências.
A cirurgia para “reverter” a mutilação, como a defibulação às vezes é chamada, pode ajudar a aliviar alguns dos sintomas.
Mas Fyle, que é de Serra Leoa ─ um país onde a mutilação genital feminina é uma prática comum ─ afirma que o cuidado não é tão simples e pode envolver várias equipes médicas.
“A cirurgia está ligada às consequências (psicológicas) de longo prazo ─ algumas pessoas descrevem como sendo pior do que transtorno do estresse pós-traumático que (geralmente) afeta soldados que estiveram no campo de batalha”, explica.
Gravidez
Quando ficou grávida em 1991, aos 22 anos, Hibo diz ter ficado aflita com a ideia de que médicos e enfermeiras olhavam sua genitália, que havia sido alterada.
“Lembro de pegar um travesseiro e colocar na minha cara pois não queria sentir a humilhação, a dor. Saber que todos aqueles olhos iriam me olhar era demais”, lembra.
Durante o parto, ela teve flashbacks do momento em que foi mutilada ─ uma experiência comum entre as sobreviventes.
Na época, ela era a primeira sobrevivente de mutilação genital feminina atendida pelos funcionários do hospital de Surrey, no sudeste da Inglaterra. Nem ela e nem os profissionais de saúde sabiam como tornar o parto mais fácil.
“Antes que eles pudessem pensar no que iria acontecer e como fariam o parto do menino, meu filho veio. Eles tiveram que me cortar. Meu filho na verdade cortou partes de mim também pois ele veio com muita força”, lembra Hibo.
“Eles ainda estava muito chocados e não sabiam o que fazer comigo. Foi horrível e acabei precisando de muito tempo para me recuperar”, acrescenta.
Apesar da experiência, Hibo ainda teve outros seis filhos e os partos seguintes foram bem menos traumáticos. O segundo filho nasceu graças a uma cesariana e ela elogiou o serviço de saúde pública britânico pela conscientização e apoio às vítimas de mutilação.
Apoio
Hibo diz acreditar que foi graças ao apoio do marido, Yusuf, que conseguiu falar abertamente sobre a mutilação genital feminina.
Mas tanto o casal quanto a família não conseguiram escapar do tabu envolvendo a prática.
A decisão de Hibo de protestar contra a mutilação genital feminina prejudicou o relacionamento entre ela e sua mãe.
Foi a mãe de Hibo que a levou para ser mutilada, reforçando uma crença muito comum na cultura do país de que a prática é essencial para a reputação de uma jovem e suas futuras chances de casamento.
“Minha mãe me amava e ela fez isto por amor”, resigna-se Hibo.
“Ela pensou que estava me protegendo. Pensou que estava protegendo a honra da família. Ela mesma foi uma vítima ─ e a mãe dela, e a avó dela. Gerações passaram pela mutilação genital feminina e não viram nada errado”, diz.
“Elas pensavam que se não fossem cortadas, iam ficar faladas, iam ser estigmatizadas, ninguém iria se casar com elas. Você será vista como alguém que fica com muitos homens. Era uma proteção para elas e também para a família”, acrescenta.
Hibo e a mãe conseguiram se reconciliar antes de ela morrer. Mas seus sogros não aprovam a decisão do casal de não submeter as três filhas à mutilação.
“Eles acreditam que fiz algo errado para as crianças, eles se perguntam sobre (o destino das) minhas filhas ─ quem vai casar com elas?”, disse Hibo.
“E aqui estou eu, pensando: ‘Eu me importo com a parte do casamento ou me importo com a saúde delas? Quero que elas sofram o mesmo que eu sofri? Quero que elas passem pelo que passei?’ De jeito nenhum.”
Hibo Wardere escreveu um livro a respeito de sua luta, Cut: One Woman’s Fight Against FGM in Britain Today (Corte: A Luta de uma Mulher contra a Mutilação Genital Feminina na Grã-Bretanha de Hoje, em tradução livre).
Em um dos trechos, ela descreve o choque de ver pela primeira vez o que tinha sobrado de sua vagina, algo que lhe “tirou o fôlego”.
“Nenhuma proteção, nenhuma beleza, a área entre as minhas pernas parecia areia marrom escura na qual alguém tinha desenhado uma linha fina, então era como se alguém tivesse enfiado uma vara na areia, ali no fim da linha estava um buraco. Minha vagina”.
“Eu podia ver que era um pouco maior do que tinha sido costurado originalmente graças ao médico que me abriu um pouco. Mas estava lá. A única pista de que eu era uma mulher. O resto da minha genitália tinha sido fatiada e jogada fora.”
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