(UOL, 11/05/2016) “Ser mulher é muito mais do que ter uma vagina. É algo que está dentro da nossa cabeça.” Foi com essa frase que a cantora portuguesa transgênero Patrícia Ribeiro, que nasceu Nuno Miguel, respondeu à pergunta do UOL sobre como se sente após ter feito a cirurgia de redesignação de gênero há sete anos. É com a mesma sentença que responde aos preconceituosos que dizem que ela fez uma castração e nunca será, de fato, uma mulher.
Patrícia, 34, conversou com a reportagem durante mais uma passagem pelo Brasil, dessa vez para gravar um clipe no Rio de Janeiro, da faixa “Boys – Meu Príncipe Encantado” do seu quarto álbum, “Chama por Mim”, e a fim de realizar mais um procedimento estético. A artista já passou por 16 intervenções para corrigir más-formações decorrentes da aplicação de silicone industrial, no passado. O encontro aconteceu na Casa de Portugal, local que preserva as memórias do país europeu por aqui, no bairro da Liberdade, região central da capital paulista, onde ela disse “se sentir em casa”.
Durante a entrevista, ela contou sobre os 15 anos de transformação, que tiveram passagem pela prostituição e que a levaram a conhecer o atual namorado, Fabio Andrade –com quem tem um relacionamento há cinco. “Fui expulsa de casa aos 17 anos e não tinha meios para sobreviver, não conseguia emprego porque meu físico representava algo que não condizia com meus documentos. Resolvi fazer programa por necessidade e foi a pior época da minha vida, sofri diversos tipos violência. Nesse ramo, você se depara com as fantasias e pessoas mais bizarras e precisa se submeter. Foi a fase que mais me deixou marcas.”
Em 2011, a portuguesa conseguiu mudar toda a sua documentação e assumir a identidade feminina. “Passei por muitas humilhações antes de conseguir ser Patrícia nos documentos. Deixava de viajar para não ter de passar por constrangimentos em aeroportos. Por vezes, tive encomendas devolvidas, que chegavam com o nome feminino. Ao ir buscar nos correios, precisava apresentar documentação e não acreditavam que eu era a mesma pessoa registrada como Nuno.”
Confira a entrevista completa:
UOL – Com quantos anos você começou a se identificar como mulher?
Patrícia Ribeiro – Percebi logo aos cinco, seis anos. Rejeitava os brinquedos masculinos, queria apenas estar perto das meninas, pentear os cabelos delas. Eu me lembro de ficar fascinada com as propagandas de bonecas na televisão.
UOL – E quando isso começou a ser um problema?
Patrícia – Na pré-adolescência/adolescência. Os conflitos começaram em casa quando tive meus primeiros namoricos. Os rapazes ligavam à procura de uma menina que não existia e foi aí que minha mãe começou a descobrir. Ela também flagrou maquiagens e roupas femininas no meu quarto. Essa época foi muito traumática. Depois disso, quando meu cabelo crescia um pouco, minha mãe já cortava e era muito triste porque queria ter os fios longos. Fui muito castigada, apanhei muito da minha mãe [os pais se separaram quando Patrícia tinha três anos e ela só reencontrou o pai na vida adulta].
UOL – Por que escolheu o nome Patrícia?
Patrícia – Desde criança, o que me fascinava era a música. Sempre tive o sonho de ingressar no mundo artístico e fiz testes para fazer parte de grupos infantis. Nessa época, uma das meninas que conheci se chamava Patrícia. Ela era lindíssima e meu sonho era ser igual a ela.
UOL – Em uma entrevista você disse que a cirurgia era a cura para a transexualidade. Você acha que os transgêneros que decidem não fazê-la são infelizes?
Patrícia – Em Portugal, a transexulidade era considerada uma doença. Dessa forma, a cura de toda essa patologia seria a cirurgia. O processo cirúrgico mudou a minha vida. Eu era uma pessoa muito agressiva, extremamente estressada porque me sentia contrariada ao ver no espelho aquele corpo. Não conseguiria continuar vivendo com o sexo masculino e realmente só me senti feliz após a operação. Porém, tenho amigas que não fizeram e não julgo. A Bíblia diz que devemos respeitar o próximo e é isso que faço. Respeito a felicidade de cada um porque não sou ninguém para criticar.
UOL – É interessante você tocar no assunto Deus, Bíblia. Muitas pessoas que passam pelo que você passou perdem a fé em qualquer coisa. Como é a sua relação com a religião?
Patrícia – Sempre temi duas coisas na minha vida: me envolver com drogas e contrair alguma doença sexualmente transmissível. Graças a Deus e a minha fé, eu segui sem cair nessas desgraças. Minha avó, dona Antonina –que sempre me apoiou– me pedia isso e eu não quis dar esse desgosto a ela. Eu me senti perdida, sim, muitas vezes, mas consegui me reerguer com fé em Deus.
UOL – Além da sua avó Antonina, alguém mais te apoiou? Como é o relacionamento com sua mãe?
Patrícia – Minha avó foi quem mais me apoiou. Diversas vezes, discutiu com minha mãe, filha dela, para me defender e até hoje, aos 75 anos, não admite que ninguém fale mal de mim. Com minha mãe, hoje em dia, as coisas estão melhores. Lutei muito para conseguir meu espaço profissional e acho que os pais sempre querem o melhor para os filhos. No fundo, acredito que se orgulha de mim, dos fãs que conquistei, mas ainda é difícil. É uma mulher que se preocupa muito com o que os outros vão pensar e dizer. Recentemente, soube por um familiar que ela disse que teve um filho homem e não estava preparada para isso. Essa informação me entristeceu muito.
UOL – E com o pai?
Patrícia – Não convivi com ele na infância, pois meus pais se separaram quando eu tinha três anos. Na época, eles brigaram muito judicialmente por pensão alimentícia e ele se afastou de nós. Atualmente somos grandes amigos, vamos para a balada juntos. Ele é meu maior fã, criou uma página de admiradores no Facebook e se dá muito bem com o meu namorado.
UOL – Por falar no Fabio, como vocês se conheceram?
Patrícia – Estava em uma fase bastante difícil. Ainda me prostituía e tinha acabado de terminar um relacionamento no qual sofri violência doméstica. Estava passando de carro na rua com uma amiga, ele estava andando e eu mexi com ele, que respondeu. Paramos e começamos a conversar. O Fabio também estava em um momento difícil, envolvido com drogas, Nós nos identificamos e nos acolhemos. Hoje, ele é a minha família e eu sou a dele.
UOL – Você se sente realizada sexualmente?
Patrícia – Muitos me perguntam sobre isso, se tenho uma vida sexual plena. E, sim, tenho. Foram dois anos e meio de acompanhamento psicológico e psiquiátrico para conseguir aprovação para a cirurgia –bancada pelo governo português. Durante esse processo, fiz muitos questionamentos a respeito disso porque era algo que talvez me impedisse de seguir com a ideia. Os médicos garantiram que eu continuaria tendo prazer e confiei. Sinto prazer, minha vagina tem autolubrificação e sou muito feliz sexualmente.
UOL – Por fim, como você se sente no Brasil? Acha que Portugal está à frente nas questões LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) ?
Patrícia – Portugal é um país ainda muito conservador, mas acredito que o caso de Gisberta –brasileira trans assassinada em 2006– e o meu abriram portas para as próximas trans. Aqui no Brasil nunca senti qualquer preconceito. Participei da 19ª Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, no ano passado, e foi muito emocionante, nunca tinha visto tanta gente. Acho que o Brasil tem mais diversidade cultural e por isso é mais aberto no mercado artístico, por exemplo. Entretanto, se há um contraponto, é que no meu país não acontecem atos violentos com tanta regularidade como aqui [o Brasil é o país que mais mata travestis e transgêneros no mundo. Segundo o disque 100, da SDH/PR (Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República), os números chegam a 40% e, em sua maioria, são crimes de ódio].
Thais Carvalho Diniz
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