(Diario de Pernambuco, 16/05/2016) Dicionários devem inserir palavras como ‘sororidade’ e ‘feminicídio’ em nome da igualdade de gênero
Não são gírias. Nem fazem parte de dialetos. São palavras da língua portuguesa, que possuem estruturas etimológicas formais clássicas, formadas por partículas de origem latina. Mesmo assim, elas estão fora dos dicionários mais conhecidos, como o Houaiss e o Aurélio. Expressões como “sororidade” e “feminicídio” são cada vez mais usadas pela sociedade e até chegam ser incluídas em textos institucionais, mas ainda não foram reconhecidas pelos mecanismos oficiais de legitimação da língua.
Os dicionários, entretanto, ainda não contemplam o uso dessas e outras palavras relacionadas à identidade feminina. Na luta pela igualdade de direitos e por condições especiais de gênero, portanto, as mulheres encontram-se em desvantagem já na própria língua portuguesa.
“Sororidade” tem um significado semelhante ao de “fraternidade”. A principal diferença é a substituição de “frater” (irmão, em latim) por soror (irmã). A expressão “Feminicídio” refere-se a crimes de assassinato cometidos contra mulheres “por razões da condição de sexo feminino”, como está descrito no Código Penal desde março de 2015, graças à lei 13.104.
Segundo o lexicógrafo Mauro de Salles, coautor e atualmente o principal responsável pela inclusão de verbetes no Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a palavra “feminicídio” estará na próxima edição impressa da publicação e também na versão on line. “Estamos totalmente e sempre abertos a críticas, que várias vezes auxiliam o nosso trabalho de aprimoramento. Afinal, um dicionário é uma obra coletiva e tais colaborações são muito bem-vindas ao processo”, garante o pesquisador.
Sobre a ausência de “sororidade”, ele explica que o dicionário dedica um verbete à palavra “sóror” e a seis derivações do elemento: “sororal”, “sororicida”, “sororicídio” e “sorório”. De acordo com Salles, “frequentemente essa escolha tem sua razão de ser no número de ocorrências que delas encontramos. As mais raras têm menos possibilidade de estar representadas”.
Por outro lado, para a linguista Ana Lúcia Dacome Bueno, da Universidade de Maringá, os critérios também são afetados por valores morais conservadores e até preconceituosos, que resultam em “práticas discursivas que invisibilizam e restringem mulheres ou, em casos extremos, reproduzem a violência da dominação patriarcal”.
No artigo Gênero e poder em dicionários da língua portuguesa, Ana Lúcia afirma que “a exclusão de um termo perfeitamente possível no léxico é uma manifestação de poder que seleciona o que deve ou não ser tomado como parte da língua”. Segundo ela, “os dicionários acabam por escolher qual realidade social desejam fixar, projetar, documentar e perpetuar. A não aparição do termo feminicídio invisibiliza a realidade do assassinato intencional de mulheres como violência de gênero.”
Em línguas como o português, há diversos casos de “sexismo linguístico” que tem sido sempre combatidos por teorias feministas contemporâneas. A escolha da palavra “homem” para representar a humanidade como um todo é o exemplo mais sintomático, além do uso do pronome masculino no plural (“eles”) em orações em que o sujeito envolve também mulheres. Com exceção de palavras como “avós”, o uso do plural, em geral, privilegia o homem.
A utilização da letra “x” ou da arroba (“@”) no final das palavras tem sido uma forma de desconstruir esse tipo de domínio, mas ambas as soluções já são bastante questionadas e cada vez menos usadas dentro dos próprios movimentos feministas e LGBT.
A Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) chegou a editar, em 1996, um guia de “Redação sem discriminação”, com versões em português, inglês e espanhol.
No caso de palavras como “sororidade”, a questão não é apenas técnica ou formal. O sentimento de companheirismo entre mulheres tem um significado bastante diferente do que os homens sentem entre si. Depois de todo um passado histórico (e um presente) repressivo, a cumplicidade feminina tem uma carga afetiva própria, de resistência, com códigos e comportamentos diferenciados.
O filme Thelma & Louise, que voltou às telas em abril, 25 anos após o lançamento, é um caso clássico de representação da sororidade no cinema. Interpretadas por Geena Davis e Susan Sarandon, as protagonistas passam a ser perseguidas como criminosas porque se defenderam de um estupro. A amizade entre elas passa a ser uma forma de proteção. Outros exemplos recentes que oferecem um novo ponto de vista sobre o tema são Tangerine e A garota dinamarquesa, que conseguem transmitir o sentimento feminino a partir de personagens transgênero. O conceito também foi trabalhado de forma irônica em comédias como Mulheres ao ataque (2014) e O clube das desquitadas (1996).
JUSTIFICATIVA DO LEXICÓGRAFO MAURO DE SALLES (DICIONÁRIO HOUAISS):
“Nenhum dicionário traz a língua inteira representada (no caso das línguas vivas), do mesmo modo que nenhum jardim botânico tem todas as plantas mesmo de uma única área geográfica que seja. O que os dicionários fazem é, num vasto mar de palavras que a língua possui, escolher determinadas delas para definir. Frequentemente essa escolha tem sua razão de ser no número de ocorrências que delas encontramos. As mais raras têm menos possibilidade de estar representadas. No caso da família de palavras com o elemento soror(i)-, o dicionário abriu verbetes para seis delas, o que não esgota as suas possibilidades, mas é boa exemplaridade de sua ocorrência língua: sóror, sororal, sororicida, sororicídio, sorório, além do elemento de composição citado: soror(i)-. Um dicionário de língua geral, que é como se classificam as obras como a nossa, não é um vocabulário ortográfico da língua. Estes devem registrar o máximo de termos que encontrarem na língua, mas não têm a necessidade de defini-los, como sabe, o que torna a função bem mais exequível. Ainda assim , Vocabulário Ortográfico da ABL também não registra a palavra cobrada: sororidade.
Há universalmente, hoje, grande preocupação em definir com o máximo de exação e equilíbrio palavras ligadas a grupos minoritários ou vítimas de preconceito. Incluem-se nesse gênero termos ligados à cor de pele, organização social, matrimônio, sexo, antifeminismo, imperfeições físicas e alguns outros mais. Sempre alguém de algum grupo militante haverá de apontar algum defeito, seja justa ou incorretamente, no trabalho que os dicionários tentam desenvolver nessa área sensível. Atenção e cobrança fazem mesmo parte das funções precípuas da militância. Por isso, estamos totalmente e sempre abertos a críticas, que várias vezes auxiliam o nosso trabalho de aprimoramento do que dizemos e de como o dizemos. Afinal, um dicionário é uma obra coletiva e tais colaborações são muito bem-vindas ao processo.”
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