(Folha de S. Paulo, 24/05/2016) Quando acordei nesta segunda de manhã, encontrei um e-mail do Luiz Mott, sociólogo baiano e um dos decanos do ativismo pelos direitos LGBT no Brasil, pedindo que me juntasse a ele e a outros e assinasse uma carta aberta ao presidente Michel Temer.
Na carta, pede-se ao presidente que apoie e amplie as políticas públicas de proteção à população LGBT, diante da ameaça representada pelo fundamentalismo religioso de setores do Congresso Nacional.
Em geral, tendo a achar essas iniciativas meio exageradas, e não gosto de assinar muita carta. No entanto, a carta que Luiz Mott me enviou merece, sim, toda a atenção de seu destinatário presidencial. Meu nome, agora, também está lá.
É que alguns membros da bancada evangélica articulam medida que representará um grande retrocesso em relação aos direitos de transgêneros e travestis no Brasil. É necessário que o presidente Michel Temer se posicione contrariamente à medida.
Refiro-me à moção para anular decreto, assinado no mês passado pela presidente Dilma Rousseff, que possibilita a utilização de nome social por parte dos transgêneros, junto ao serviço público e repartições governamentais.
O decreto foi uma das poucas medidas concretas do governo Dilma que beneficiaram a população LGBT. Em sua iniciativa para invalidá-lo, os deputados fundamentalistas alegam que a presidente exorbitou suas funções ao legislar tal medida. Dizem que a matéria só poderia ser regulamentada pelo Congresso.
Quem exorbita, na verdade, são esses próprios legisladores, que procuram impor suas regras de cunho religioso a toda a população brasileira. A lógica é a mesma utilizada por facções como o Estado Islâmico e o Talibã: desqualificar e eliminar quem não concorda comigo.
Que a bancada evangélica defenda a liberdade e os direitos de seus fieis, perfeito. Mas a liberdade religiosa a que todos temos direito não pode acarretar a limitação dos direitos humanos de quem nada tem a ver com religião. O Brasil não é regido pela Bíblia. É a Constituição Federal que determina isso.
Qual tipo de perversidade é essa que faz com que congressistas neguem a um ser humano —em nome de Deus— a simples possibilidade de ter um nome com o qual se identifique? Qual sentimento cristão justificaria tal mesquinharia?
Não basta que a expectativa de vida média de um transgênero no Brasil seja de apenas 35 anos de idade, ou que tenha 14 vezes mais chances de ter uma morte violenta do que se nascesse nos Estados Unidos. Pergunto aos deputados: por que tanta desumanização?
Por falar nos Estados Unidos, recentemente, o governo do presidente Barack Obama saiu em defesa dos transgêneros contra uma medida discriminatória implementada no estado da Carolina do Norte. Obama interpelou a medida judicialmente e incumbiu sua ministra da justiça de fazer discurso oficial em que dizia aos transgêneros que o governo reconhecia sua dignidade e seus direitos. “Nós enxergamos vocês”, foi o que disse a ministra da justiça americana.
Seria muito bom que o presidente Temer e seu governo pusessem óculos e também enxergassem a injustiça e a desumanização que esse tipo de medida perversa impõe aos cidadãos brasileiros transgêneros, que são, por qualquer medida que se tome, tão respeitáveis e dignos quanto eu e você.
Acesse o PDF: O Congresso e a desumanização, por Alexandre Vidal Porto (Folha de S. Paulo, 24/05/2016)