(O Globo, 27/05/2016) Ativista, psiquiatra e defensora destacam a necessidade de haver mobilização
“Monstros”, “doentes”, “loucos”. O estupro coletivo que chocou o país fez com que seus autores, ainda foragidos, ganhassem essas alcunhas nas redes sociais. No entanto, especialistas ouvidos pelo GLOBO não acham que os responsáveis apresentem qualquer tipo de distúrbio mental: segundo eles, os criminosos agiram acreditando que ficarão impunes. E, para os entrevistados, a crença na impunidade é alimentada por uma cultura machista que, muitas vezes, culpa as vítimas.
A defensora pública Arlanza Rebello destacou que até políticos fazem eco ao discurso de que muitas mulheres “pediram” para ser estupradas ao usarem roupas sensuais. Para a advogada e ativista Marília Fernandes, integrante de um organismo latino-americano de defesa dos direitos das mulheres, é necessário que a sociedade se mobilize para combater o machismo, que, segundo ela, sustenta a impunidade. Já Ricardo Krause, presidente da Associação Brasileira de Neurologia e Psiquiatria Infantil no Rio, disse que a cultura do estupro está enraizada:
— Meninos acabam cometendo o crime por saberem que outros o praticaram impunemente. Fazem isso por uma questão de autoafirmação.
No Rio, cerca de 12 pessoas são vítimas de estupro por dia, o que representa um caso a cada duas horas. O estupro é crime hediondo, e as penas previstas no Código Penal vão de oito a 12 anos de reclusão, caso haja lesão grave ou a vítima seja menor de 18 anos (caso da jovem). Se o agressor for menor de idade, a medida socioeducativa será reavaliada a cada seis meses.
Maíra Fernandes, advogada, integrante do comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher
É preciso que todo mundo fique realmente aterrorizado com o que aconteceu na cidade. Foi um crime horroroso, e também foi horrorosa a forma como os responsáveis lidaram com o que fizeram. Eles se vangloriaram, na certeza de que há um público que acha legal esse tipo de crueldade. A gente precisa perceber que o machismo existe de uma forma flagrante na sociedade. Machismo mata. E feminismo nunca matou ninguém. A sociedade ainda se recusa a falar do machismo abertamente. As mulheres que levantam uma bandeira são muitas vezes ridicularizadas. Espero que esse crime terrível leve o tema a um debate com mais seriedade. Temos de falar sobre a temática do machismo, sobre o que leva os homens a cometerem esse crime. Precisamos pensar políticas públicas para a questão do gênero. Pensar a educação com foco no gênero. Muitos acham que isso é exagero, mas não é. A culpa nunca é da vítima. Ela foi estuprada por ser mulher. Poderia ter sido qualquer outra. Não faz a menor diferença ser usuária de drogas, mãe ou jovem demais. Não deveríamos “ensinar” as mulheres a evitarem estupros, mas, sim, ensinar os homens a não estuprarem as mulheres.
Ricardo Krause, presidente da associação brasileira de neurologia e psiquiatria infantil no Rio
Esse tipo de crime suscita a opinião pública. Ainda mais da forma como foi: uma menina, mais de 30 homens. Normalmente, as vítimas são mortas em casos assim. O estupro coletivo não costuma ser algo premeditado, geralmente decorre de uma oportunidade, e dificilmente as vítimas conseguem escapar. Nos primeiros dias após o crime, a sobrevivente, na maioria dos casos, apresenta sintomas de estresse agudo, como ansiedade, depressão, angústia e paranoia. Sente medo de que possa acontecer novamente, fica com insônia, pode acordar sobressaltada no meio da noite. Mas a forma como ela reagirá depois de algumas semanas dependerá de vários fatores, como a relação que ela tem com o sexo e o sentimento de culpa, por exemplo. A jovem precisará do apoio da família e de tratamento. Há técnicas que usam o movimento dos olhos para enganar o cérebro, com o objetivo de fazer com que a vivência traumática não atrapalhe o dia a dia da pessoa. Podem também ser usados medicamentos, mas não é a alternativa mais indicada. A vida da vítima do estupro estará em risco se ela não tiver acompanhamento especializado.
Arlanza Rebello, coordenadora do Núcleo dos direitos da Mulher da defensoria pública do estado do Rio
Foi uma barbárie. Deve ser um momento de muita dor para a família. O caso ocorreu em um momento de intensa luta das mulheres. Quando crimes assim vêm a público, precisam ser exorcizados. Hoje, todas as mulheres do Rio de Janeiro só falam dessa tragédia. Estamos impactadas com tamanha violência. Precisamos canalizar essa dor para alguma ação. O estupro deriva da cultura machista que nós temos, de homens que acham que podem usar o corpo feminino para seu prazer e da ideia da considerá-lo uma espécie de castigo para as mulheres que fogem dos parâmetros. Há casos em que homens estupram lésbicas para ensiná-las a se tornarem mulheres. Por outro lado, a gente vê na internet jovens tratando o estupro como uma ideia de afirmação masculina. Estamos em um momento muito complicado, difícil, em que vemos pessoas públicas e até políticos dizendo abertamente que mulheres deveriam ser estupradas. É a banalização total dessa violência. É um contexto muito sério de conservadorismo e banalização. Eu confesso que, às vezes, fico muito assustada. Tenho a sensação de que estamos regredindo como sociedade. Precisamos reagir rapidamente.
Por Carina Bacelar/ Guilherme Ramalho
Acesse no pdf: Especialistas analisam comportamento de estupradores (O Globo, 27/05/2016)