(Estadão.com, 02/06/2016) Uma semana após a divulgação do caso de estupro coletivo contra uma adolescente no Rio de Janeiro, a sociedade parece finalmente querer discutir a cultura do estupro. São fotos no Facebook, inúmeras reportagens (além da cobertura massiva do caso), debates e posicionamentos de repúdio.
É bom, mas ainda é pouco. Rechaçar um ato tão bárbaro cometido contra uma adolescente é o mínimo do mínimo que pode se esperar de um ser humano. Preocupemo-nos e muito com os que ainda encontram motivos para relativizar a violência sofrida pela jovem, mas não estamos em posição de comemorar um aparente levante contra o crime.
Não há o que comemorar porque foram milhares de mulheres estupradas e posteriormente silenciadas e culpabilizadas até haver um caso que mobilizasse a sociedade para além do movimento feminista. E que caso: 33 homens contra uma jovem desacordada e, finalmente, o país disparou o alarme. Mas a realidade do estupro é muito maior do que isso: só enquanto escrevi esse texto (algo em torno de uma hora) cerca de 6 mulheres foram estupradas, de acordo com os nossos últimos dados oficiais. Quem está olhando para essas mulheres?
O deprimente episódio do estupro coletivo atraiu até a imprensa internacional e, por sua barbaridade, escancarou a gravidade do problema. Ficou difícil não se indignar, mas os outros estupros, igualmente dolorosos, continuam acontecendo e permanecem silenciados e deslegitimados. Há o estupro conjugal, quando o parceiro força a namorada/esposa a ter relações com ele; há estupros na infância e na velhice. Contra meninas e mulheres, bonitas ou feias, com roupa ou sem roupa, com penetração ou não, praticado por desconhecidos ou por pessoas amadas. Tem de tudo, só não tem consentimento. Todos eles são crimes, independentemente de qualquer variável sobre a vítima.
Casos como o de agora trazem consigo a grande oportunidade da sociedade discutir a cultura do estupro e de violência contra a mulher, de admitir que ambas existem de maneira generalizada no Brasil e que é necessário mudar. Foi como aconteceu na Índia, após o também chocante episódio de estupro coletivo dentro de um ônibus que causou a morte da jovem de 23 anos em dezembro de 2012 (para quem quer saber mais, assista ao filme “India’s Daughter“, disponível na Netflix). Mas não adianta indignar-se agora e tapar os olhos para os estupros que acontecem todos os dias e que não ganham as manchetes. De nada adianta repudiar um estupro coletivo mas não alertar o amigo que faz uma piada machista ou que acha que pode importunar uma mulher sem o consentimento dela, que pode embebedá-la para “facilitar”. De nada adianta assistir a violências cotidianas e não intervir a favor da vítima.
Sim, é preciso coragem para perceber-se parte do problema e para agir contra ele. É uma desconstrução diária e que tem que partir de absolutamente todos. Mas compactuar com violências de gênero “menores” e depois dizer-se contra um estupro coletivo é muito fácil e não muda nada. Combater a cultura do estupro não é mais do que a nossa obrigação enquanto sociedade, e, tenham certeza, exige muito mais do que alterar a foto do perfil.
Acesse no site de origem: Indignação seletiva, por Nana Soares (Estadão.com, 02/06/2016)