(Folha de S.Paulo, 05/06/2016) “Chorei quando vi o vídeo, diz avó de garota que afirma ter sido estuprada” era o título da reportagem que entrou na versão digital da Folha na quinta-feira, 26 de maio.
Trazia o relato do caso de estupro coletivo ocorrido em favela da zona oeste do Rio, que chocou o país.
Só se tornou público por conta da divulgação de um vídeo que tem tanto de tenebroso quanto de inequívoco: uma garota nua aparece desacordada, com os órgãos genitais expostos e feridos, num ambiente em que um grupo de homens ri, debocha e toca nela humilhantemente.
O título, que usa o recurso de atribuir à vítima a afirmativa de ter sido estuprada sem a chancela do jornal, revoltou leitores. “A garota não ‘diz ter sido estuprada’. Não restam dúvidas. A garota foi estuprada”, reclamou a leitora Natália Machiaveli ao Painel do Leitor. “É de uma insensibilidade atroz”, disse Renato Janine Ribeiro, professor de ética e filosofia política à ombudsman.
Para a Redação, escrever que a garota diz ter sido estuprada não se trata de erro, mas de descrição factual, pela qual não se levantaria dúvida alguma sobre o estupro em si. Discordo. Soa como covardia do jornal, disfarçada de distanciamento.
No dia anterior (25/5), por cerca de duas horas, o jornal publicou texto na internet que falava de “suposto estupro”. Erro grave. O editor de “Cotidiano”, Eduardo Scolese, explica: “Quando vimos o vídeo, não havia dúvida: a menina havia sim sido estuprada. Fomos os primeiros a afirmar isso, citando a lei de 2009”, que passou a considerar atos libidinosos como crime de estupro.
Como escreveu o diretor da Sucursal do Rio, Marco Aurélio Canônico: “Ninguém que tenha assistido ao vídeo em que a jovem desacordada é molestada por um homem, enquanto ao menos um outro grava a cena e um terceiro assiste, pode ter dúvida de que ela foi estuprada”.
A Folha demorou a tratar o problema com a dimensão correta. A edição de sábado (27) não trouxe investimentos como entrevistas analíticas ou construção do retrato do estupro no país, com números. No domingo, em cobertura mais ampla, traçou retrato da região onde aconteceu o estupro, citou interessante campanha nos EUA e entrevistou a representante da ONU dedicada à defesa dos direitos femininos. Mas foi pouco.
Qual deve ser o papel do jornal num caso como esse?
Investigar de modo meticuloso e narrar sua apuração sobriamente. Preocupar-se com o ângulo social e com as políticas públicas. Contar o particular, sem perder a dimensão do exemplo geral. Provocar discussão e debate amplo e aprofundado.
Há dúvidas e inconsistências nos relatos desde o momento em que a menina saiu de casa até a hora em que o vídeo entrou nas redes sociais? Os repórteres têm obrigação de reconstruir essa história. Desvendar tais inconsistências não é duvidar do que foi relatado pela garota. As respostas daí surgidas não podem justificar o estupro, caminho tomado pelo delegado afastado do caso.
Para Renato Janine, é mais fácil abraçar um discurso condenatório do que estimular uma reflexão que tente explicar o que aconteceu.
A reação mais comum de núcleos sociais e políticos seguiu o diapasão dos casos chocantes. Propor endurecimento da lei, aumento da pena, sem questionar as causas nem se tais mudanças trariam consequências.
O governador interino do Rio Francisco Dornelles chegou a dizer que, se dependesse dele, o estupro seria punido com pena de morte. O presidente interino Michel Temer se disse indignado e lançou um plano nacional para combater a violência contra a mulher. Genérico, sem prazo e sem custo, apontou boa reportagem da Folha. Houve leitor que sugeriu a castração de estupradores.
O caso é um entre os milhares que acontecem por ano. O jornal deve destrinchar esses números, discutir suas causas. É preciso ouvir educadores, antropólogos. Onde estão as ponderações de psicólogos e psicanalistas que abarquem a questão da sexualidade?
O combate à chamada “cultura do estupro” levou milhares às ruas. Mensagens de leitores questionavam o estupro e até culpavam a vítima. O que isso significa? As respostas ficaram mais nas colunas, ocupadas majoritariamente por homens.
O psicanalista Contardo Calligaris foi assertivo em coluna na “Ilustrada”: “Acredito que existe, sim, uma cultura do estupro. E gostaria de me perguntar como ela nasce e como autoriza os estupradores”.
A seção da ONU dos direitos das mulheres lançou comunicado em que resume o que está em debate: “Cultura do estupro é um termo usado para abordar as maneiras em que a sociedade culpa as vítimas de assédio sexual e normaliza o comportamento sexual violento dos homens”.
O colunista Reinaldo Azevedo preferiu contornar o fato objetivo para apontar o “estupro como estandarte” ideológico. A pluralidade do jornal, por vezes, cobra seu preço.
Estupro é um tema violento para os leitores. Nenhum argumento deve, em nenhuma instância, normalizar ou justificar atos bárbaros e criminosos. A cultura jornalística precisa criar mecanismos para rever a desigualdade de gênero em sua máquina interna se quiser combater males como a cultura do estupro.
Foto: Eduardo Knapp
Acesse aqui o PDF: A cultura do estupro no jornal (Folha de S.Paulo, 04/06/2016)