(Revista Fórum, 07/06/2016) A garantia de direitos civis caminha de maneira bem distinta se compararmos o Brasil ao Canadá. Enquanto aqui se extinguiu o ministério dos Direitos Humanos, o primeiro-ministro canadense apresenta um projeto de lei que garante direitos às pessoas trans
O legislador constituinte originário brasileiro reconheceu como primeiro fundamento da dignidade da pessoa humana em nossa Constituição Federal de 1988 a igualdade, estabelecendo que ‘homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição’.
Como já escreveu o eminente professor Luis Roberto Barroso em artigo publicado em 2006, “Diferentes, mas iguais: O reconhecimento jurídico das relações homoafetivas no Brasil”, infelizmente uma década transcorreu e nem podemos afirmar que sejamos mais iguais do que éramos em 2006. Somos preconceituosos, como resquício de uma cultura patriarcal que ainda guarda uma sociedade extremamente arraigada a preceitos religiosos, inclusive com grupo organizado nos altos escalões de governo que reiteram atos de retrocesso perante as tão difíceis conquistas da Sociedade Homoafetiva.
Ativistas do movimento social LGBTTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) já perceberam que se depender do Legislativo nacional para que se estabeleça o exercício de direitos civis pela população TRANS, estarão cada vez mais carentes e inertes em sua cidadania. Porém, a omissão legislativa nacional não impediu administrações públicas de atuar dentro de suas áreas de atribuição. A Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio de Janeiro, em 18 de maio de 2011, editou o Decreto 33.816 determinando às administrações públicas diretas e indiretas no Rio de Janeiro a reconhecerem o nome social das TRANS, isto é, respeitando seu nome de gênero dependendo de sua orientação: caso fossem de orientação feminina deveriam ser respeitados seus nomes neste gênero. Caso fossem de orientação masculina, da mesma forma. O Decreto dispõe sobre a inclusão e uso do nome social de pessoas travestis e transexuais no âmbito da Administração Direta e Indireta do município Carioca.
O Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, com vistas a implementar a política de promoção e defesa dos direitos humanos, assegurou através da Portaria n. 233 de 18 de maio de 2010, aos servidores públicos, no âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional, o uso do nome social adotado por travestis e transexuais, considerando por nome social aquele pelo qual essas pessoas se identificam e são identificadas pela sociedade.
A Presidência da República editou em 28/4/2016 um decreto que permite transexuais e travestis usarem seu nome social em todos os órgãos públicos, autarquias e empresas estatais federais. Esta medida vale para funcionários e também usuários dos serviços públicos federais.
O ministro do Trabalho do governo do presidente interino Michel Temer pretende revogar o decreto da presidente afastada, que respeita o direito ao uso do nome social na Administração Pública Federal. O pastor Ronaldo Nogueira (PTB-RS) é um dos 29 autores do projeto de lei apresentado em 18/5/2016, que pretende retroceder na medida, que foi um dos últimos atos oficiais da chefe do Executivo Federal afastada, e um dos poucos gestos a favor de LGBTs no poder.
Deputados federais de 11 partidos assinam o Projeto de Decreto Legislativo de Sustação de Atos Normativos do Poder Executivo (PDC) nº 395/2016. Outros inimigos declarados da causa LGBT são autores da proposta, como o pastor Ezequiel Teixeira, ex-secretário de Direitos Humanos e Assistência Social do estado do Rio de Janeiro. Teixeira foi exonerado do cargo depois de defender publicamente a ‘cura gay’. Outro velho conhecido na manutenção da homofobia e transfobia, o congressista Marco Feliciano, ex-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, que durante sua gestão permitiu apresentação de projeto para o tratamento de homossexuais, ainda que o Brasil tenha sido pioneiro ao retirar o ‘homossexualismo’ da listagem de doenças mentais no início da década de 80.
Decerto que a garantia a direitos civis caminha de maneira bem distinta, se compararmos o Brasil ao Canadá. Enquanto o Brasil extinguiu o órgão de direitos humanos, o Canadá apresenta projeto de lei que garante direito às pessoas TRANS.
Em 17 de maio de 2016 foi celebrado o dia Internacional de Combate à Homofobia e Transfobia, data que marcou no Canadá apresentação por Justin Trudeau, primeiro-ministro do país, de um projeto de lei que pretende defender o direito da população TRANS naquele país.
O primeiro-ministro Trudeau anunciou em Montreal uma legislação federal para tramitação que garantirá proteção de direitos humanos para a população TRANS. Seu discurso emocionou, dizendo que o trabalho árduo alcançado até o momento não poderia parar, e que o Estado Canadense poderia fazer ainda mais por esta minoria. O anúncio se deu quando recebia o Prêmio ‘Laurent McCutcheon’, que homenageia o pioneiro canadense na luta contra homofobia, e que presidiu organismo voltado ao público LGBTTT em Montreal de 1982 a 2013.
Brasil e Canadá estão anos luzes distantes na defesa e implementação de direitos humanos e na efetivação de um Estado Democrático de Direito. Enquanto enfrentamos crise política e financeira sem precedentes, com redução orçamentária, diminuição da máquina administrativa, tornamo-nos um dos países mais atrasados do continente americano na defesa de direitos à Sociedade Homoafetiva, e em especial à população TRANS, que certamente é parcela desta minoria que mais sofre com ausência de previsão de direitos civis.
Além de não avançarmos na proteção à população TRANS, estamos de fato retrocedendo, pois alguns direitos conquistados com muita luta nas últimas décadas, esvazia-se de forma assustadora de 2015 até os dias atuais. Enquanto isto, organismos isolados como a Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio mantêm projeto empreendedor, intitulado projeto DAMAS, que pretende a reinserção da população TRANS no mercado de trabalho. Também a Comissão para Acessibilidade Pública da OAB-RJ (CAP) estará realizando Seminário e Audiência Pública para debater de forma democrática um Projeto de Lei para Concursos Públicos no Rio de Janeiro, em que pretende estabelecer uma vaga como cota para minoria TRANS em cargos, empregos e funções públicas nas administrações Políticas Públicas Fluminenses que será encaminhado à presidência da OAB RJ que deliberará a respeito.
A história se repete. Fomos um dos últimos países a libertar os escravos na América em 1888, o que levou a monarquia a seus últimos dias, e assistimos vizinhos como Uruguai e Argentina legalizarem o casamento entre pessoas do mesmo sexo, enquanto no Brasil o Congresso Nacional analisa projeto de lei para impedir a utilização do nome social da população TRANS, o que pode viabilizar o fim de uma dentre poucas conquistas em direitos civis das TRANS no país. Temos muito a aprender com o Canadá, pois como lema da campanha da Prefeitura do Rio, ‘Se um de nós não tem direitos civis, então nenhum de nós tem direitos civis’. Perde a Democracia, perde o cidadão brasileiro.
Sérgio Alexandre Camargo, Advogado preside a Comissão para Acessibilidade Pública da OAB RJ, e Membro do Comitê Carioca para Cidadania LGBTTT da Prefeitura do Rio
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