(ConJur, 13/06/2016) O Brasil está em estado de choque após o caso da adolescente do Rio de Janeiro que foi estuprada por diversos homens, tendo sua imagem exposta nas redes sociais, por iniciativa desses autores do crime, que contam com a impunidade estatal e a aprovação social. Casos semelhantes são verificados em outras regiões do Brasil, tendo sido amplamente divulgado três casos de estupro coletivo de adolescentes no Piauí. Nesse contexto, o atual debate sobre a denominada “cultura do estupro” pode gerar resultados positivos, isso se mudarmos os paradigmas para a efetivação das leis já existentes.
Em todos os casos, iniciaram-se imediatamente ataques às vítimas, às suas condutas, aos seus comportamentos, aos seus antecedentes infracionais e à forma como se vestiam. Tais questionamentos decorrem da cultura brasileira, que ainda é significativamente machista e patriarcal. Por essa razão, a vítima é muitas vezes vista como a principal responsável e “culpada” pelo estupro que sofreu. Um dos investigados, como no caso do estupro coletivo do Rio, verbalizou que a vítima não deveria estar naquele local. Nas redes sociais, algumas pessoas sustentaram que, se a vítima estava no baile funk, isso indicou aos autores do crime que a jovem estava disponível. Outras pessoas comentam que se a adolescente era usuária de drogas, isso demonstraria que a vítima anuiu com o ato sexual.
O que a sociedade precisa compreender é que o estupro é um crime contra a dignidade sexual da vítima, portanto, se há violência ou grave ameaça e não houve consentimento, configura-se o crime. Se a vítima estava no baile funk ou não, a forma como ela estava vestida, a forma como ela se comportava, nada disso importa se ela não consentiu com a prática do ato sexual. O sistema de Justiça precisa começar a respeitar e dar uma maior credibilidade à palavra da vítima.
O estupro é um crime gravíssimo. As consequências para a vítima são nefastas e permanecem para o resto da vida. Uma jovem chamada Isadora, que estudava na Universidade Seropédica Rural do Rio de Janeiro, três anos e meio após ter sido estuprada por colegas, dentro de um dormitório da própria instituição, não aguentou a pressão, adoeceu, entrou em depressão e se matou em maio deste ano.
O estupro atinge em grande quantidade as crianças, em especial as meninas. A ginecologista Cláudia Cabral descreveu, com detalhes, um caso de terrível de uma menina de apenas 10 anos de idade que foi vítima de um vizinho: “Ela estava muda por mais de 2 meses, e o único som que eu ouvi foi um choro baixo e doído. O exame ginecológico era indescritível. Parecia ter sido submetida à tortura com aqueles aparelhos medievais inimagináveis. Sua vulva era um buraco só. Havia ruptura perineal completa, unindo uretra, vagina e ânus num buraco irregular e único. Imaginei a dor física. Só imaginei. Imaginei a dor psicológica. Só imaginei. E chorei. Nunca me esqueci. O que nunca consegui imaginar foi que criatura teria feito aquilo com ela. Estou sem resposta até hoje”[1].
Nesse tipo de crime, por mais surpreendente que possa parecer, o agressor normalmente é alguém conhecido da vítima, como um vizinho, ou alguém que tem um grau de parentesco e relação de autoridade com a vítima, como o pai, o padrasto, o tio ou o avô. Como proteger as meninas se elas são atacadas dentro do local onde deveriam ser protegidas, como o seu lar?
Casos como esses não podem acontecer, portanto, devemos trabalhar diariamente nessa questão no âmbito do Grupo de Enfrentamento à Violência Doméstica do Ministério Público do Estado de São Paulo. Precisamos dar um basta à violência sexual contra crianças, adolescente e mulheres. Porém, como dar efetividade às leis já existentes?
Após o clamor público do caso do estupro coletivo no Rio de Janeiro, o Congresso Nacional correu para editar uma lei que aumenta as penas em caso de estupro coletivo. O discurso de criação de leis, sem o devido aparelhamento dos órgãos e desenvolvimento de políticas públicas, é um discurso vazio. Estima-se que apenas entre 10% e 35% dos estupros no Brasil sejam relatados às autoridades ou ao sistema de saúde. Mesmo com essa subnotificação notória, a polícia brasileira registra o altíssimo número de 1 caso de estupro a cada 11 minutos.
O Ministério da Saúde fez levantamento sobre o impacto da violência contra as mulheres no Brasil e chegou à conclusão de que mais da metade das mortes de mulheres e adolescentes vítimas de estupro são de jovens com menos de 19 anos. Das adolescentes e crianças menores de 13 anos que deram à luz no ano passado, pelo menos 6% foi vítima de estupro[2].
Os crimes sexuais já recebem uma pena longe de ser baixa e, nos casos do estupro de vulneráveis, já são considerados crimes hediondos, portanto, a simplificação do aumento simbólico das penas não terá resultados efetivos[3]. Nos termos do Código Penal, entende-se por estupro: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”, com pena de 6 a 10 anos de reclusão. Caso resulte em lesão corporal grave, a pena é de 8 a 12 anos de reclusão. No caso de resultar em morte, a pena é de 12 a 30 anos de reclusão. No caso do estupro de vulnerável, ou seja, “ter conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 (quatorze) anos”, a pena é de 8 a 15 anos. Na mesma pena incorre quem pratica tais atos com pessoa que tem enfermidade ou deficiência mental. Se resulta lesão grave, a pena é de 10 a 20 anos, e se resulta morte, 12 a 30 anos.
Na área da saúde reprodutiva da mulher, os avanços e retrocessos são evidentes: se por um lado existe a Lei 12.845/2013, que prevê a obrigatoriedade de atendimento no SUS às meninas e mulheres vítimas de violência sexual, por outro lado, já foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, o famigerado PL 5.069, de autoria do deputado Eduardo Cunha, que pretende impedir que as mulheres e meninas tenham pleno acesso ao SUS, dificultando muito o caminho das vítimas de estupro. O uso de contraceptivo de emergência, a proteção contra a gravidez indesejada, a prevenção de HIV e de outras doenças sexualmente transmissíveis são direitos da vítima e importantes providências para o apoio e cura de seus traumas psicológicos e físicos. Em São Paulo, existe o Hospital Pérola Byington, que é referência nessa área, onde meninas e mulheres de distintos locais procuram ajuda e atendimento. Todavia, sabemos que no Brasil não existem equipamentos de saúde adequados e em número suficientes, tanto no interior de São Paulo, como em todos os estados do Brasil, desde a região Sul até a Norte.
A Constituição brasileira assegura a igualdade entre todos os brasileiros, sendo vedada qualquer forma de discriminação. A violência sexual é uma forma de discriminação. A interpretação da lei não pode ser feita de forma literal, mas deve levar em conta todo o sistema jurídico, inclusive o texto constitucional e os tratados internacionais que foram ratificados pelo Brasil, como a Convenção CEDAW (Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher) — e todos vedam a discriminação e a violência contra a mulher — e a Convenção Belém do Pará[4].
O Estado brasileiro precisa cumprir com suas obrigações contidas no Direito interno (Código Penal e Constituição Federal) como nos tratados internacionais, proporcionando a prevenção dos crimes de estupro e a sua punição também, além de oferecer o acesso à saúde às vítimas de estupro.
Chegou o momento da mudança de paradigmas e efetivação das leis existentes. Que o choque proporcionado por esses trágicos casos das adolescentes do Rio de Janeiro ou das jovens do Piauí, todos seus sofrimentos, desesperos e de todas as meninas e mulheres vítimas de estupro no Brasil não tenham sido em vão, e que sejam capazes de gerar uma maior proteção às meninas e mulheres e proporcionar um debate mais aprofundado sobre a “cultura do estupro” e a necessidade de desenvolvimento de equidade de gênero. Por uma política mais inclusiva das mulheres em todos os níveis de governo. Menos tolerância com a violência contra as mulheres e meninas, educação sexual e de gênero nas escolas e universidades, o peso das leis para investigar, processar e punir os autores de estupro, sem demagogias como o aumento simbólico de penas, mais sensibilidade de gênero em todos os níveis de governo, Executivo, Legislativo e Judiciário. Por fim, temos que ter a consciência de que não podemos retroceder nos avanços já conquistados, e dizer um sonoro “não” ao famigerado PL 5.069, e aos pretendidos retrocessos de não permitir o aborto legal, em caso de estupro, como já defendido pela atual secretária de Políticas Públicas para as Mulheres, Fátima Pelaes.
A sociedade brasileira, por meio de distintos órgãos, está expressando sua mobilização e indignação, em especial as jovens estudantes e feministas, nascendo dessa maneira uma nova luz e uma forte esperança de transformação social e de incansável combate à “cultura de estupro”, que não apenas existe, mas também mata.
[1] Reportagem da Globo News, http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2016/06/medica-faz-relato-emocionado-sobre-menina-vitima-de-estupro-aos-10-anos.html, em 9/6/2016.
[2] O Estado de S. Paulo, http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,metade-das-mulheres-vitimas-de-estupro-que-morrem-tem-menos-de-19-anos,10000055961, em 9/6/2016.
[3] BERCLAZ, Márcio, Precisamos mais do que nunca discutir educação sexual, Justificando, 8/6/2016.
[4] PAES, Fabiana, Estupro: crime e consentimento, Jornal do Brasil, http://www.jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2016/06/03/estupro-crime-e-consentimento, em 8/6/2016.
Fabiana Dal’Mas Rocha Paes é promotora de Justiça do MP-SP (atua no Grupo de Enfrentamento à Violência Doméstica), diretora do Ministério Público Democrático, mestre em Direitos Humanos e Justiça Social pela Universidade de New South Wales (Sydney, Austrália) e doutoranda na Universidade de Buenos Aires (Argentina).
Acesse no site de origem: A cultura do estupro não apenas existe, mas também mata, por Fabiana Dal’Mas Rocha Paes (ConJur, 13/06/2016)