(Marina Pita/Agência Patrícia Galvão, 23/06/2016) “A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social”, diz o artigo 203 da Constituição Federal de 1988, que em seu inciso V estabelece “a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família”.
Leia mais:
Bebê é infectado por chikungunya durante gravidez na Paraíba (O Estado de S. Paulo, 24/06/2016)
Ministério da Saúde confirma 1.616 casos de microcefalia no país (O Globo, 22/06/2016)
Bebês com microcefalia passam a ter disfagia (JC On Line, 20/06/2016)
Assim, ao contrário do que muitos imaginam, o Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social (BPC) não é um programa de governo, mas uma obrigação do Estado brasileiro para com seus cidadãos e cidadãs. E no contexto atual da epidemia do zika vírus, o BPC é um instrumento importante para a garantia de vida digna às famílias que, como consequência da zika, agora necessitam de renda auxiliar para tentar garantir as necessidades de crianças nascidas com a síndrome congênita do vírus.
Por isso alguns especialistas demonstram preocupação com o número irrisório de novas concessões do benefício no primeiro semestre deste ano, 381, conforme informou o jornal Folha de S. Paulo, que teve acesso aos dados do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) com exclusividade.
“São cerca de 7 mil crianças notificadas com microcefalia no Brasil, sendo que 1,6 mil foram confirmadas com microcefalia decorrente da síndrome congênita do zika. Ou seja, este número [de novos benefícios] é irrisório. O número mostra que a política não está sendo capaz de atender às necessidades. Ou há um problema com o critério de renda, muito baixo, ou com a burocracia”, afirma Debora Diniz, coordenadora da Anis – Instituto de Bioética, organização que está à frente da iniciativa de levar ao Supremo Tribunal Federal um pedido de Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) para garantir direitos às mulheres sob impacto da epidemia de zika.
Também autora de um documentário sobre mulheres cujos filhos nasceram com a síndrome congênita do zika, Debora reforça que a epidemia – fruto da incapacidade do Estado de conter a expansão do mosquito Aedes aegypti – vem ocasionando o nascimento de crianças com necessidades muito específicas, em famílias extremamente pobres e de cidades do interior de estados nordestinos. E, sendo assim, é preciso agir para que essas mulheres tenham acesso fácil e rápido ao benefício.
O Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) afirma que as redes de Assistência Social e do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) estão trabalhando para acelerar o processo de requerimento do BPC para crianças diagnosticadas com microcefalia e que disponham do laudo médico circunstanciado emitido pelo Sistema Único de Saúde (SUS). No início deste mês foi publicada a Portaria nº 58, que estabelece um processo acelerado de concessão do benefício (inclusive com agendamento em caráter especial facilitado pelos Centros de Referência de Assistência Social, os CRAS) para bebês diagnosticados com microcefalia, o que exclui os que nasceram com outros tipos de alteração do sistema nervoso central.
Até o momento, o SUS registra a notificação de 7.936 crianças nascidas com suspeitas de síndrome congênita do zika. Deste total, 1.581 tiveram confirmação de microcefalia e/ou alterações do sistema nervoso central e foram encaminhadas a unidades do CRAS para avaliação inicial da situação socioeconômica. Após a análise, 987 foram encaminhadas às agências do INSS. Ou seja, pelo menos 62,4% dos casos confirmados foram considerados elegíveis para receber o BPC, o que dá a dimensão da situação de miséria das famílias que estão lidando com a situação. E, no entanto, até agora apenas 381, equivalentes a 38,6% dos casos aptos a receber o benefício, conseguiram de fato acessá-lo. Considerando todos os casos confirmados com microcefalia, apenas 24% tiveram acesso ao direito de receber o BPC, ou seja, somente um em cada 4 casos confirmados da síndrome.
Segundo o MDS, ainda estão em análise 50 requerimentos, 130 já foram negados, 232 serão reavaliados – são os casos de quem recebe outros benefícios e, pelo entendimento do governo, não poderia acumular o BPC – e 194 estão agendados, com promessa do Ministério de que terão seu atendimento antecipado.
“Com estes números globais, já passaram por nós quase a metade das crianças diagnosticadas. Nem todas irão ao INSS, pois as que não forem elegíveis não serão encaminhadas ao INSS pelos CRAS”, escreveu o MDS à Agência Patrícia Galvão.
Critério já considerado inconstitucional dificulta acesso ao BPC
Na avaliação de especialistas em assistência social, juristas, advogados e defensores públicos, atualmente o maior impeditivo que as famílias têm encontrado para acesso ao benefício é o critério de renda extremamente baixa para concessão do BPC: um quarto de salário mínimo per capita – o equivalente, em uma família com quatro indivíduos, a uma renda mensal por pessoa de menos de R$ 220. Por este critério, não terá acesso ao BPC um casal com um bebê nascido com a síndrome congênita do zika, em que apenas um deles trabalha e recebe um salário mínimo – o que representa menos de R$ 10 por dia por pessoa.
O Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), bem como o conjunto dos Conselhos Regionais de Serviço Social dos estados, vêm há tempos debatendo a necessidade de elevar o critério de renda para meio salário mínimo per capita familiar para o corte de acesso ao benefício.
Em 2013, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela inconstitucionalidade do critério da renda familiar mensal per capita inferior a um quarto do salário mínimo para a concessão de benefício a idosos ou deficientes, por considerar que esse critério estava defasado para caracterizar a situação de miserabilidade. O plenário, no entanto, não pronunciou a nulidade da norma.
Aliás, desde o início do governo interino de Michel Temer, o CFESS percebe que vem aumentando a pressão para rever para baixo o critério de corte de renda – seja dos funcionários do Estado, seja pelos meios de comunicação. “Considero uma aberração. Isso é a afirmação de um Estado que não está preocupado com as garantias sociais. Negar um salário mínimo a essas pessoas é um absurdo”, critica Marlene Merisse, conselheira do CFESS, para quem o critério já é de pobreza em alto grau e, reforça, “os problemas dos gastos estatais não estão nesses benefícios”.
Merisse salienta que, pelas características dos bebês que nasceram com a síndrome do zika congênita, muitas mulheres terão de se dedicar exclusivamente aos cuidados do bebê “até o final de sua vida, ou da vida da criança”. E, para garantir o direito da criança à saúde, já terá de dedicar boa parte de seu tempo. “Hoje ela precisa buscar o suporte em informação, educação, saúde, fisioterapia. É mais um aporte de responsabilidade para a mulher, que vai bater na porta de uma série de espaços, como acionar o Ministério Público”, salienta a conselheira.
Defensoria em Pernambuco iniciou atendimento especial
Para garantir o acesso ao Benefício de Prestação Continuada às mães de crianças com microcefalia ou síndrome congênita do zika, a Defensoria da União de Pernambuco, em parceria com a Defensoria do Estado, vêm realizando mutirões para atendimento, sempre às sextas-feiras. “Firmamos uma parceria para atender as necessidades de pessoas com deficiência, mas no contexto de zika e sendo Pernambuco o estado mais afetado pela epidemia, demos início a um trabalho voltado ao atendimento das famílias com crianças notificadas com microcefalia e/ou outras alterações do sistema nervoso central“, explica Tarsila Maia, defensora pública da União em Pernambuco e representante do Grupo de Trabalho de Saúde das defensorias, que vem atuando para uma ação coordenada das defensorias em todos os estados.
Além de responder aos pedidos de acesso à saúde – como garantia de leito de UTI e exames às crianças com a síndrome congênita do zika – a Defensoria da União no Estado de Pernambuco atua para garantir o acesso ao BPC. Em alguns casos, o INSS computa alguma renda indevidamente e a renda mensal familiar ultrapassa o atual critério de um quarto de salário mínimo per capita. Mas, além disso, a Defensoria vem trabalhando para garantir o BPC para famílias miseráveis, mas que não passaram no critério de renda.
“Esse limite do BPC vem sendo flexibilizado pelas demandas judiciais. Avaliamos se a família vive mesmo em situação miserável e entramos com o pedido. Temos margem para atuar porque há um entendimento pacífico de que o pedido é válido para famílias com renda mensal per capita de até meio salário mínimo”, explica Maia.
De acordo com a defensora pública, o fato de o INSS – a superintendência do Nordeste – passar a aceitar o laudo médico para caracterização de deficiência já foi um grande avanço para agilizar os processos e garantir o BPC às famílias necessitadas. “Havia demora para realização da perícia. Essa medida já deu alguma celeridade ao processo”, afirma a defensora.
A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) proposta pela Anis – Instituto de Bioética visa garantir, entre outros direitos, o pagamento do BPC a todas as crianças diagnosticadas como afetadas pela epidemia, independentemente de critério de renda.
Um benefício que tende a estabilidade
Desde 2011, o número absoluto de novos beneficiários do BPC Pessoa com Deficiência, no qual se enquadram as crianças com microcefalia, vem diminuindo. (Ver Tabela).
Em junho de 2016, o MDS registrava 230.825 novos requerimentos do BPC Pessoa com Deficiência. Atualmente o benefício de assistência social é concedido a 2,377 milhões de brasileiros.