(Época, 27/06/2016) Jean-Pierre Bemba foi condenado a 18 anos de prisão pelo Tribunal Penal Internacional. Para especialista da Anistia Internacional, sentença abre portas para que processos semelhantes também avancem
Na última terça-feira, 21 de junho, o Tribunal Penal Internacional (TPI) condenou o antigo vice-líder da República Democrática do Congo a 18 anos de prisão. Jean-Pierre Bemba, que liderou tropas na República Centro-Africana em 2002, foi processado por crimes de guerra e contra a humanidade. Entre eles, o estupro. “Foi a primeira vez que o TPI fez uma condenação de estupro como crime de guerra, além de ser a primeira vez de uma condenação por responsabilidade de comando”, diz Fátima Mello, historiadora que atua na Anistia Internacional Brasil. Segundo a especialista, a condenação abre um precedente para o combate ao crime sexual em países com conflitos históricos. “Há um custo político e moral muito grande”, afirma. Segundo estudo publicado em jornal científico americano, 48 mulheres são estupradas a cada hora no Congo.
Entre outubro de 2002 e março de 2003, as tropas do Movimento para a Libertação do Congo (MLC) — coordenadas por Bemba — cometeram uma série de crimes contra os direitos humanos: sequestros, assassinatos e estupros. Enviadas à República Centro-Africana, disseminaram o terror na tentativa de apoio ao então presidente Ange-Félix Patassé, cujo poder estava ameaçado. Bemba estava ciente das práticas de seus subordinados, mas não preveniu os ataques. Entenda:
ÉPOCA – É a primeira vez que o Tribunal Penal Internacional processa estupros como arma de guerra. Qual a importância dessa decisão?
Fátima Mello – A condenação foi em 21 de março. Agora, em 21 de junho, foi determinada a sentença de 18 anos de prisão por crimes de guerra e crimes contra a humanidade em três categorias: assassinato, estupro e pilhagem. Duas novidades do TPI foram muito importantes para a Anistia Internacional: a primeira condenação baseada em responsabilidade de comando e a primeira condenação de estupro como crime de guerra, porque isso abre um precedente para condenar o que se passa em ambientes de conflitos. O reconhecimento disso é muito importante. É a primeira vez que existe também uma condenação na lei penal internacional classificando também o estupro de homens.
ÉPOCA – O que isso sinaliza para a comunidade internacional?
Fátima – O estupro é amplamente disseminado nesses contextos, e inclusive chega ao Brasil na forma de refugiadas mulheres. Mas essa é uma prática tão arraigada nesses conflitos que é importante a comunidade internacional pressionar para tirar isso do estado de banalidade, como uma prática usual. Essa condenação do TPI de estupro como crime de guerra abre um incômodo na comunidade internacional. Ela pressiona para que o debate da opinião pública seja ampliado.
ÉPOCA – Você acredita que o TPI vai ampliar sua área de atuação? Ou seja, ele vai passar a julgar detentores de altos cargos — como Jean-Pierre Bemba — com maior frequência?
Fátima – É o primeiro caso, mas essa foi uma sinalização importante de que pessoas, políticos com muito poder, podem ser objeto de condenação de sentença.
ÉPOCA – O que difere esse caso da República Centro-Africana de outros crimes semelhantes que não foram identificados como crimes de guerra como no conflito da Síria?
Fátima – Esse caso reuniu evidências muito contundentes. Mais de 5 mil vítimas participaram do julgamento no tribunal. Nenhum outro caso do TPI teve tantas vítimas. Isso também favoreceu o encaminhamento da sentença. Em outros casos com maior controvérsia, esperamos que as portas sejam abertas para que os processos avancem também.
ÉPOCA – Como um governo pode usar suas forças de segurança para prevenir e combater a violência sexual? Como ele pode amparar suas vítimas?
Fátima – A violência sexual no contexto de conflitos como esses são o elo de uma cadeia muito intensa de violações, onde o Estado nacional está completamente desestruturado, as instituições estão frágeis. As políticas públicas de proteção às mulheres são muito desestruturadas, a sociedade civil também é fragilizada e tem baixa capacidade para reagir. É necessária a reconstituição desses Estados, do tecido social, da capacidade da sociedade civil de se reorganizar e enfrentar a violência e o conflito entre grupos armados de modo a reconstruir a dinâmica democrática, o diálogo, a participação social, a institucionalidade. O caminho não é imediato. A condenação da comunidade internacional começa a criar constrangimento, e isso ajuda a criar um novo ambiente no país.
ÉPOCA – Quem deve agir para que casos como esse sejam julgados mais frequentemente?
Fátima – As instâncias internacionais. Daí a importância do sistema das Nações Unidas, onde todos os Estados nacionais se sentem representados. O sistema das Nações Unidas representando a comunidade internacional como um todo, ao fazer essa condenação, acaba gerando um custo político e moral muito grande. Ela exerce uma pressão para que o país tome medidas para cessar essa violência.
ÉPOCA – De que maneira ela pode gerar essa pressão?
Fátima – A condenação do Bemba é um caso óbvio. Foi vice-presidente, também era comandante militar de um exército privado e ocupou altos cargos no país. Uma condenação de um político de tanto poder na sociedade congolesa gera um constrangimento em todas as instâncias do governo. A gente espera que outras instâncias das Nações Unidas também comecem a se pronunciar mais fortemente sobre esse tema. Esse é um tema sobre o qual o Conselho de Segurança deveria se pronunciar: por que o Conselho só se preocupa com ataques de forças militares maiores, e não com a segurança dos cidadãos nesse nível que as mulheres sofrem? Esse deveria ser um tema encarado como um tema de segurança internacional.
ÉPOCA – Qual é o histórico de violações sexuais no Congo?
Fátima – No caso do Bemba, esses ataques, sequestros, estupros e assassinatos foram feitos na República Centro-Africana, mas a prática também é assustadoramente comum no Congo. O Congo tem o histórico de um país que vem se desestruturando há muito tempo. Cerca de 80% dos celulares do mundo dependem do Congo, de minérios de sua reserva mundial. Em vez de gerar riquezas, uma sociedade próspera, isso gerou um conflito enorme e armado, inclusive com a exploração de trabalho infantil e trabalho escravo. É um exemplo de quanto a sociedade do Congo precisa se reestruturar para conseguir se beneficiar das riquezas que tem. As mulheres são o elo mais frágil dessa desestruturação. Suas crianças vão para as minas de exploração, seus maridos vão para os conflitos entre grupos armados… É um contexto que expõe as mulheres a muita vulnerabilidade. Esses são países que têm uma história de colonização, europeia sobretudo, que dividiu a sociedade, desestruturou as culturas locais, gerou aberrações. A colonização se somou à violência. O fato é que hoje se chegou a uma situação em que está claro que é no corpo das mulheres que se descarrega toda uma trajetória de exploração econômica e cultural.
Gabriela Varella
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