(BBC Brasil, 28/06/2016) A cada 10 partos realizados em maternidades particulares no Brasil, 8,5 são cesáreas – a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda 1,5. É essa discrepância na rede privada que faz com que o Brasil ainda ostente o triste título de país com mais cesarianas do mundo.
Mas futuros levantamentos sobre o tema podem trazer uma queda nesse percentual por causa de um projeto chamado Parto Adequado, implementado em 40 hospitais do país, que visa a combater a epidemia de cesáreas.
Em menos de um ano, essas maternidades conseguiram derrubar suas taxas em 9 pontos percentuais, fazendo com que a média de cesarianas caísse de 78% para 69%. Além disso, mais da metade dos hospitais envolvidos já conseguiu reduzir o índice para 60%.
Mas por que esse projeto – uma parceria entre a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o Hospital Israelita Albert Einstein e a organização americana Institute for Healthcare Improvement – vem dando frutos após décadas de fracasso para lidar como problema?
Segundo os profissionais ouvidos pela BBC Brasil, ligadas ou não ao Parto Adequado, o sucesso está em atacar em várias frentes, inclusive nas mais polêmicas.
“É claro que não íamos mudar nada para valer se não discutíssemos novos modelos de remuneração dos obstetras. E isso passa por resgatar o papel fundamental das enfermeiras nos partos de baixo risco, ainda que isso signifique enfrentar a resistência de alguns médicos”, diz Rita de Cássia Sanchez, obstetra e especialista em medicina fetal do Einstein.
A diretora de Desenvolvimento Setorial da ANS, Martha Oliveira, diz que é preciso reorganizar todo o sistema. “Trabalho há mais de 10 anos com o tema parto na ANS, mas nada dava certo. Isso porque nosso sistema de saúde nesse setor está preparado para (que partos) tenham como desfecho uma cesariana. Precisamos mudar isso.”
Hora de mexer no bolso
E por que é necessário mexer no bolso tanto de médicos, como de hospitais e planos de saúde? Segundo as especialistas, o modelo atual de remuneração é totalmente ineficiente.
Hoje, grande parte das gestantes faz seu parto com seu médico de confiança, e não com a equipe plantonista. Além disso, o plano de saúde paga o médico por parto acompanhado, e não por turno trabalhado – o que acontece em outros países, como a Inglaterra.
“Esse sistema é insustentável”, diz Raquel Marques, presidente da ONG de direitos da mulheres Artemis.
“Ter uma grávida atrelada a apenas um profissional não funciona, pois não se tem como aumentar a remuneração ao ponto que valha a pena para o médico ficar horas e horas no hospital a acompanhando. Ele tem outras pacientes, tem o consultório – onde ganha mais -, ou não tem disponibilidade para ficar o dia todo.”
Rita concorda: “O médico da grávida que entrou em trabalho de parto não vai ficar lá 10, 12 horas para acompanhá-la. Ele vai querer embora rápido e por isso indica cesárea.”
A diretora da ANS, Martha Oliveira, vai além e diz que o sistema de financiamento atual é a causa e a consequência da epidemia desse tipo de parto: “Hoje, o que importa é o volume de partos. E sempre vai dar errado se você tiver de fazer um volume grande para ganhar o que merece”.
Para ela, o esquema de pagar o obstetra por turno de trabalho, por si só, também não é suficiente. “Quanto custaria um acompanhamento de parto normal, se eu desmarquei todas as consultas do dia que eu tinha agendadas no meu consultório?”
Diante desse impasse, o projeto está fazendo testes de novas propostas de remuneração. Uma delas sugere a remuneração pelo desfecho – o parto adequado àquela gestante e ao seu bebê. Há debates sobre uma divisão de pagamento envolvendo o valor do procedimento em si, mas também o trabalho por turno.
Enfermeiras no parto
A alteração no pagamento envolve ainda mudanças no esquema de trabalho nos hospitais.
Entre os modelos testados no projeto-piloto está aquele em que o parto é realizado pelo plantonista da maternidade e ponto final. Em outra proposta, uma equipe multidisciplinar de plantão apoia a gestante até a chegada de seu médico.
“Esse modelo pode ser eficiente porque, em vez de passar muitas horas acompanhando o parto, o médico é chamado quando a gestante já estiver mais próxima de dar à luz – e assim não se sente pressionado a fazer uma cesárea”, diz Rita Sanchez, obstetra do Einstein.
Outro modelo prevê que o parto (sem risco) seja assistido por uma enfermeira obstetra, e não por um obstetra – o que já acontece no SUS, mas ainda não é regulamentado no sistema privado.
É nesse ponto que entra outro aspecto do projeto: a valorização de uma equipe multidisciplinar, incluindo dar mais protagonismo à enfermagem.
“Essa mudança de chave só vai acontecer quando valorizarmos mais a enfermeira obstetra e a obstetriz. A enfermagem sabe cuidar muito melhor dos pacientes – incluindo as gestantes – do que um médico”, diz Martha, da ANS.
“O médico estuda patologia, condutas. A enfermeira está mais preparada para ficar com a paciente no chuveiro, na bola (usada para amenizar os sintomas)… e com isso fazer com que o trabalho de parto evolua mais confortavelmente e adiar a analgesia.”
Segundo Martha, outro ponto importante é a capacitação da equipe médica para fazer um parto normal.
“Ao longo de todos esses anos, eles foram treinados para fazer cesarianas. Precisam reaprender a assistir a mulher em um parto normal. E o médico também precisa reaprender a trabalhar em equipe, valorizando a importância dos outros profissionais.”
Menos prematuros, menos UTI
O projeto também teve um impacto positivo em um dos principais problemas causados pela epidemia: bebês prematuros.
Isso porque no caso de cesáreas agendadas sem necessidade (antes de a mulher entrar em trabalho de parto e sem razões médicas) há um risco de o bebê nascer antes de estar “pronto”.
Seis hospitais integrantes do Parto Adequado conseguiram reduzir as admissões em UTI neonatal decorrentes de cesáreas prematuras em até 67%.
Esse aspecto também é um dos pilares do projeto, que prevê uma reestruturação da infraestrutura do hospital, com menos UTI neonatal (já que, sem tantas cesáreas, o índice de internações cai) e mais áreas para itens que ajudam o parto normal, como bolas, banquetas para o parto e chuveiro.
Pagando o dobro
Doutor em ginecologia e obstetrícia pela USP, o gerente médico do hospital Nipo-Brasileiro Rodrigo Borsari conta que a instituição implementou diversas mudanças que fizeram o número de partos normais subir de 15% para 40% em menos de um ano.
Na remuneração dos médicos, são duas mudanças básicas – uma já em vigor e outra sob análise.
“Com o Parto Adequado, fechamos um contrato com uma operadora de saúde, que agora paga aos médicos o dobro pelo parto normal do que pela cesárea”, diz Borsari.
“Na segunda medida, temos uma série de metas que, se atingidas, aumentam a remuneração. Um exemplo é a UTI neonatal: se reduzirmos a internação em 10%, o plano de saúde vai pagar mais tanto para o hospital quanto para o médico. Já temos menos internações, mas faremos uma análise detalhada nos próximos meses e esses valores serão pagos retroativamente.”
Esse indicador é importante porque mostra uma forma de o hospital continuar obtendo renda mesmo com menor uso dessa UTI – hoje, muitas maternidades dependem dos altos valores pagos pelas operadoras por internações de recém-nascidos.
“Outro dado relevante é o Apgar (teste que mede a saúde do bebê ao nascer). Estamos aumentando o número de partos normais e o resultado do Apgar continua o mesmo. Isso é crucial para mostrar que esse tipo de parto não traz mais riscos para os bebês, como muitos médicos ainda acreditam.”
Impasses e desafios
Borsari afirma, no entanto, que um dos maiores desafios é convencer os médicos que atendem no hospital apenas pelos planos de saúde.
“Ainda há certa resistência entre os médicos que vêm aqui para acompanhar suas pacientes na hora do parto. Nesses casos, o número de cesáreas ainda é grande. Em contrapartida, posso dizer que 100% dos partos normais são feitos pelos médicos contratados do hospital, durante seus plantões.”
Para o pediatra Pierre Barker, vice-presidente do americano Institute for Healthcare Improvement, há dois desafios para fazer o projeto avançar – e o primeiro é justamente essa relutância.
“Estou extremamente otimista em relação ao projeto. Jamais vi tamanha redução nas taxas de cesáreas em tão pouco tempo. Uma das coisas que me preocupam é como convencer os médicos independentes a trabalhar pelo que é melhor para a mãe e o bebê”, disse à BBC Brasil.
“Muitos têm medo de serem processados em caso de problemas com o bebê durante um parto normal. Sempre que vou ao Brasil, ouço esse argumento de que o parto normal é arriscado, que pode causar mais problemas neurológicos para o recém-nascido. Sabemos que, em nível populacional, isso não é verdade. Há muitas pesquisas provando que o risco inclusive é menor se o parto normal for bem assessorado.”
Outra barreira que Barker vê é o grau de informação das mulheres brasileiras. “É preciso valorizar o empoderamento feminino nesse cenário. Precisamos levar em conta que é muito difícil pra uma gestante contradizer o que o obstetra está dizendo”, diz.
“Se o médico dela diz ‘veja, eu não estou gostando dos sinais do seu bebê’, é complicado questionar. E sabemos que uma dos motivos dessa epidemia de cesárea é uma interpretação exagerada dos sinais fetais. Mas uma gestante bem informada, com ferramentas para conversar com o médico, pode mudar esse cenário. Mas o Brasil não está fazendo um bom trabalho no sentido de informá-las como se deve.”
Com mais informações, as brasileiras voltarão a se sentir seguras como parto normal, avalia.
“Para isso, é preciso explicar com clareza os benefícios do parto normal para ela e para o bebê, falar dos riscos da cesárea e também criar ambientes hospitalares que propiciem o parto normal, mais calmos, tranquilos. Se antes do parto, elas conhecerem esses locais, entenderem que é normal doer, é natural ter medo, confiarem na equipe… o Parto Adequado vai avançar ainda mais.”
Autonomia
Raquel, da ONG Artemis, afirma que gostaria de ver dados qualitativos dos hospitais que integram o projeto.
“Seria interessante ouvir em detalhes essas mulheres. Os números são muito animadores, mas temos de ouvi-las para saber como foi a experiência. Seria horrível ver as taxas de cesáreas caindo se houver perda de autonomia por parte da mulher.”
A ANS informou que uma pesquisa de satisfação rápida feita com as mulheres que acabaram de ter bebês teve resultados foram empolgantes.
Segundo o Ministério da Saúde, quando não há indicação médica, a cesárea ocasiona riscos desnecessários, aumentando em 120 vezes a probabilidade de problemas respiratórios para o recém-nascido e triplicando o risco de morte da mãe.
Entre os hospitais privados selecionados para o projeto-piloto estão o Teresa de Lisieux (Salvador), Mater Dei (Belo Horizonte), Perinatal (Rio), Nipo Brasileiro (São Paulo) e Moinhos de Vento (Porto Alegre).