(Brasil de Fato, 11/07/2016) Marcha das Vadias de Curitiba expõe e questiona diversas formas de violência contra as mulheres
Com o tema “Vadias contra o Fascismo: Cuspindo na Cara do Estado”, a 6ª edição da Marcha das Vadias de Curitiba ocorreu neste sábado (9) e reuniu centenas de mulheres no centro da cidade. Discursos fascistas no Congresso Nacional, machismo, racismo, estupro e aborto, foram algumas das questões abordadas na manifestação, todas ligadas a algum tipo de violência, real ou simbólica.
Para Jussara Cardoso, militante e uma das organizadoras do protesto, a visibilidade dos fatos relacionados à violência contra a mulher tem aumentado, o que faz parte da sociedade questionar e denunciar alguns comportamentos. “A violência contra a mulher sempre existiu. A diferença é que os casos, quando viravam notícia, ocupavam as páginas policiais e era como algo banal ou normal que acontecia. Hoje vemos casos de violência contra mulher sendo muito repercutidos”, comenta.
Se por um lado, manifestantes de peitos, pernas e pelos à mostra, com batom e marcas de tinta vermelha pelo corpo pode parecer perturbador para quem assiste a Marcha das Vadias, por outro, esse formato de intervenção pública é uma tentativa de dizer à sociedade que ninguém pode ter poder sobre as mulheres. Jusssara lembra que a Marcha das Vadias se apropria de um discurso violento para expor e lutar contra uma realidade violenta.
“70% dos casos de estupro acontecem dentro de casa. Eu sou uma vítima de estupro de dentro de casa, que não falou o que aconteceu. Quantas historias temos de mulheres que passam a vida inteira apanhando dentro de casa?”, questiona Jussara.
Feminicídio
Desde que a Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015) entrou em vigor no Paraná, em março de 2015, o Ministério Público (MP-PR) ajuizou 109 denúncias de homicídios (consumados ou tentados) praticados contra mulheres. Estes foram os dados divulgados pelo próprio órgão em março deste ano, que expuseram a motivação para a maioria dos crimes: o sentimento de posse por parte dos homens. A nova legislação qualifica crimes em razão de gênero e diminui a impunidade aos agressores, podendo aumentar a pena em até 50% se a vítima for gestante, menor de 14 anos, apresentar alguma deficiência ou for maior de 60 anos.
Os dados fornecidos pelo Ministério Público a partir da nova lei se somam às informações divulgadas pelo Relatório Estatístico dos Números Criminais Relacionados à Violência contra a Mulher, da Secretaria Pública do Paraná (SESP), onde consta que o Paraná registrou em 2015 (de 1º de janeiro a 17 de dezembro), 75.217 casos de violência contra a mulher, entre eles 142 casos de homicídios. Os municípios com maior índice de violência são os da região metropolitana de Curitiba, como Campina Grande do Sul, Piraquara e Santa Helena.
Segundo o documento, a natureza do crime também varia entre ameaças (39.473) e lesões corporais (27.932), sendo as principais vítimas mulheres entre 18 e 24 anos e de 35 a 45 (mais de 40% das ocorrências). Os números estão disponíveis no relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa do Paraná (Alep) sobre violência contra a mulher, publicado no dia 26 de fevereiro.
A realidade do Paraná se insere em um cenário mais amplo de violência contra a mulher que atinge o país. Estatísticas internacionais baseadas em informações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e publicadas no Mapa da Violência 2015, por meio da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), apontam que o Brasil ocupa a 5ª posição entre 83 países mais violentos do mundo, com taxa de 4,8 assassinatos por 100 mil mulheres.
Violência contra transexuais
Durante a Marcha das Vadias, a pauta LGBT teve destaque. Rafaelly Wiest, presidente do Transgrupo Marcela Prado, fala sobre a realidade da população transexual em Curitiba, que convive diariamente com a realidade do preconceito e da demanda da prostituição.
“Curitiba é uma das cidades mais violentas contra pessoas LGBT e pessoas trans. E o mais absurdo é que o mesmo que nos agride de dia é o que nos sustenta à noite. Falo isso, porque Curitiba é considerada, de acordo com levantamento de ONGs, a cidade que mais bem paga pessoas trans. Então, ao mesmo tempo que você ganha muito dinheiro na prostituição à noite, você sofre muito durante o dia. É um contraponto absurdo”, avalia Rafaelly.
Segundo o relatório divulgado pela ONG Transgender Europe (TGEU), o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo, apresentando mais de 600 mortes entre janeiro de 2008 e março de 2014. O levantamento feito por ONGs ligadas ao tema também revelou, por meio da cobertura da imprensa, um total de 57 mortes violentas de trans nos 26 primeiros dias de 2016.
“Se eu tenho alguma denúncia no meu corpo, como pelo no rosto ou pomo de adão, eu recebo a transfobia com mais força. E se eu sou negra é mais forte ainda, se eu tô na esquina, é mais ainda e assim vai. Então é uma violência muito agressiva e absurda”, denuncia Rafaelly. Para ela, o passo para vencer esse cenário é o reconhecimento enquanto cidadã, por meio de políticas inclusivas que gerem respeito e convício pacífico, como o nome social [nome que as pessoas trans escolhem para usar, em contraste com o nome que foram oficialmente registradas quando nasceram].
Juventude negra
Durante a Marcha em Curitiba, um dos momentos de grande emoção foi quando as mulheres negras tomaram o microfone e trouxeram suas vozes para ecoar entre as outras mulheres.
Brinsan Ferreira, da Rede de Mulheres Negras do Paraná, chama a atenção para o fato de que o machismo e a violência contras as mulheres negras chega com ainda mais força e crueldade. “Sofremos o tensionamento da sociedade que é racista, dessa polícia que é racista, que mata preto todo dia, que violenta a preta. Porque a abordagem de branca é de um jeito, a da preta na rua à noite é de outro jeito. A do piá preto então, nem se fala”.
Na opinião de Brinsan, o feminismo também precisa falar do extermínio da juventude negra, porque esse problema está diretamente ligado ao núcleo familiar das mulheres negras.
De acordo com os dados do Mapa da Violência, um jovem negro é morto no Brasil a cada 23 minutos. Também como consta neste documento, que subsidiou trabalho de uma Camissão Parlamentar de Inquérito na Câmara dos Deputados e no Senado, a taxa de homicídios de jovens negros é quatro vezes maior que a referente a jovens brancos da mesma faixa etária, entra 15 e 29 anos.
“Temos que colocar essa pauta em evidência. Quero andar tranquila sem ser assediada na rua? Quero. Mas também não quero que a mãe preta da periferia fique chorando todos os dias. Então a gente precisa pensar não só no que afeta a mulher negra em relação à saúde e à falta de acesso a direitos mas também no núcleo que ela está inserida. Se ela é a chefe de família e você vê que os jovens estão morrendo por serem filhos dela, porque são negros, a gente tem que colocar na pauta das mulheres feministas, sim, o extermínio da juventude negra. Porque é a mulher preta que vai pagar o caixão sozinha, é ela que vai pagar com o seu sofrimento a vida inteira”.
Acesse no site de origem: Parem de nos matar, por Camila Hoshino e Daniela Menegazzi (Brasil de Fato, 11/07/2016)