(Época, 12/07/2016) ÉPOCA acompanhou três histórias de violência e a peregrinação para receber apoio, atendimento psicológico e até respaldo da lei
No dia 26 de maio, a notícia de um estupro coletivo ocorrido no Rio de Janeiro abalou o país. A população foi surpreendida com uma notícia que parecia ter saído das manchetes de um jornal indiano. Nos dias que se seguiram, o espanto veio do tratamento dispensado à vítima, uma jovem de 16 anos, pela polícia. O delegado-titular da Delegacia de Repressão a Crimes de Informática (DRCI), Alessandro Thiers, duvidara do depoimento da garota e afirmou que a polícia não podia ser “leviana de comprar a ideia de estupro coletivo quando na verdade a gente não sabe ainda”. Thiers foi afastado das investigações.
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Ao ser desacreditada por quem cuidava de seu próprio caso, a vítima sofreu uma segunda violência. Lidar com a impotência diante da dificuldade de provar o que aconteceu pode ser tão difícil quanto passar pelo estupro em si. “O estupro é uma consequência dessa ideia naturalizada de que o corpo da mulher é público”, afirma Ana Rita Prata, do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
O calvário das vítimas de estupro é resultado, segundo a especialista, de uma postura machista da sociedade. O direito que alguns homens se arrogam de dar cantadas, fazer investidas ofensivas ou dar um beijo forçado durante uma balada está na raiz da cultura do estupro. Quando a mulher é vítima de estupro, além do trauma, ela carrega o peso da culpa de que poderia ter agido diferente. “A mulher que decide procurar ajuda se questiona se poderia ter feito alguma coisa para não passar por essa situação”, diz Ana. “As pessoas que a atendem têm essa mesma visão. Surgem os questionamentos sobre roupa, horário… Como se essas características fossem determinantes para a mulher ser vítima. Não é ela que tem de ser julgada, mas sim quem praticou o crime.”
No Brasil, uma vítima é estuprada a cada 11 minutos, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Mesmo que a constatação seja alarmante, é comum que a vítima seja questionada ao fazer a denúncia, o que ocorre em apenas 10% dos casos. A Delegacia da Mulher funciona apenas em horário comercial e, portanto, 90% dos casos nem sequer chegarão a ser investigados. A estimativa é de que sejam mais de 527 mil casos de estupro por ano. Uma petição na internet já conta com mais de 17 mil assinaturas exigindo um atendimento 24 horas.
A primeira denúncia, muitas vezes, acontece em relatos para a família. No entanto, nem nesse meio a mulher pode se sentir totalmente segura. De acordo com o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou conhecidos. Mesmo entre entes queridos, o descrédito também é recorrente e a violência é acrescida pela dor da dúvida ou pela substituição do papel de vítima pelo de mulher sedutora. “É fácil esquecer que o dano causado a uma vítima de estupro que é desacreditada pode ser no mínimo tão devastador quanto o dano causado a um homem inocente que é injustamente acusado”, afirma o escritor Jon Krakauer no livro Missoula – O estupro e o sistema judicial em uma cidade universitária(Companhia das Letras, 472 páginas, R$ 59,90).
É recomendação do Ministério da Saúde que a vítima receba atendimento sem a necessidade de realizar Boletim de Ocorrência ou coletar material para provas do crime. Se houver recusa pelo hospital, o médico pode ser “responsabilizado civil e criminalmente pela morte da mulher ou pelos danos físicos e mentais que ela sofrer”, segundo o artigo 13 do Código Penal. O coquetel antirretroviral e outros medicamentos de profilaxia pós-exposição devem ser ministrados em até 72 horas para evitar doenças ou gravidez. No entanto, uma em cada três (em torno de 35%) pacientes desiste do tratamento devido aos efeitos colaterais fortíssimos, segundo o obstetra Osmar Ribeiro Colás, coordenador do Núcleo de Prevenção à Violência da Proex (Nuprevi) e Obstetrícia da Unifesp.
“As mulheres têm medo de denunciar, porque a violência está nas instituições”, afirma Osmar Ribeiro. “A vítima passa por uma peregrinação violenta.” A recomendação é de que a vítima, ao procurar auxílio para fazer uma denúncia ou receber atendimento médico, esteja acompanhada de alguém para que possa exigir seus direitos. “O ideal é sempre ir acompanhado para evitar esse tipo de abuso. A Defensoria do Estado tem setores de serviço social e psicologia para realizar uma consulta com orientação”, diz Antonio Serafim, coordenador do Núcleo Forense do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (IPq).
Por volta de 7% dos casos de estupro resultam em gravidez, segundo estudo do Ipea, de 2011. Eduardo Cunha (PMDB-RJ), presidente afastado da Câmara, propôs o Projeto de Lei nº 5.069/2013. Se for aprovado, ele dificultará ainda mais o acesso das vítimas ao SUS. O projeto propõe que as vítimas só recebam atendimento médico após o exame de corpo de delito, feito pelo Instituto Médico Legal. O projeto institui, ainda, a obrigatoriedade do registro na delegacia de polícia.
“A vítima tem o direito a fazer o aborto em casos de estupro, que hoje é autorizado pela legislação. Se o hospital negar, isso é uma violência”, afirma Osmar Ribeiro. Segundo ele, o médico tem o direito de alegar objeção de consciência, mas não a instituição. Segundo dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), de 2014, 67,4% das vítimas de estupro que ficaram grávidas não tiveram direito ao serviço de aborto legal, que deveria ser realizado até o quarto mês de gestação. ÉPOCA acompanhou a via crucis de três vítimas de abuso sexual no âmbito familiar, médico e judicial.
Gabriela Varella e Nina Finco
Acesse no site de origem: O calvário das vítimas de abuso sexual (Época, 12/07/2016)