(Brasil Post, 18/07/2016) Na sua essência mais absoluta, o racismo é o processo de desumanizar o outro. Faz o racista, assim, uma escala que vai do eu-humano ao outro-animal.
Há ainda hoje um claro ordenamento dos subgrupos humanos. Quem está no topo dessa pirâmide é o branco.
O negro, por sua vez, é o que usualmente ocupa o patamar mais baixo desse edifício abominável. Nenhum grupo étnico foi mais desumanizado ao longo dos últimos cinco séculos do que os negros.
Ainda hoje a ofensa tradicional dirigida contra um negro é chamá-lo de “macaco” (ofensa particularmente comum nos campos de futebol). Usando-se esse termo, o agressor deixa claro que não reconhece o caráter humano daquele indivíduo. “O negro é um bicho e assim deve ser tratado”, afirma o racista.
A escravidão aparece ao longo da história humana em diversas formas e cores. Mas do século XVI ao século XIX – quando o trabalho escravo passa a ser usado para mover grandes engrenagens do sistema capitalista – o termo “escravo” passou a ser um sinônimo de “negro”.
Nos EUA a escravidão só foi revogada em 1865. No Brasil, arrastamos essa vergonha até um pouco mais adiante; 1888.
A escravidão é a desumanização absoluta do indivíduo. O negro é agora uma mercadoria, um animal de carga, um ativo na empresa do branco.
Mas o fim legal da escravidão não implicou em uma incorporação absoluta dos negros. Nem lá, nem cá.
“A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”, profetizou Joaquim Nabuco em 1900. O mesmo vale para os EUA.
Ainda em meados do século passado nos EUA – já principal potência capitalista – era, por exemplo, proibido a relação sexual entre pessoas de “raças diferentes”. Aqui o legislador temia, antes de tudo, que uma mulher branca se entregasse a um homem negro, a um “não-humano”. Deitar-se com um “não-humano” significava macular-se de maneira indelével.
O segregacionismo contra o qual se ergueram gigantes como Rosa Parks e Martin Luther King era uma manifestação legal e cultural do entendimento do negro como um ser inferior ao branco.
As leis anti-miscigenação só foram definitivamente abolidas na “terra da liberdade” em 1967.
A vida de um negro, nessa escala, tem nitidamente um valor inferior à de um branco. Assim como a vida de um rico tem um valor superior à de um pobre. Como os negros são usualmente a maioria dos “pobres”, esses dois fatores acabam por se somar.
Pensemos no caso brasileiro recente.
Quando a polícia entra em uma favela e mata uma criança negra e pobre “por acidente, engano ou descuido”, isso nem chega mais a ser notícia. Agora imagine que esse mesmo evento ocorra em um bairro de classe média e que a vítima seja uma criança branca. Seria a reação da “sociedade civil organizada” a mesma em ambos os casos?
Como o negro é usualmente o “pobre” e como o “pobre” é usualmente o “marginal”, o negro é usualmente visto como marginal.
Quando se trata da polícia, então, esse viés racial é ainda mais violento.
O que está acontecendo nos Estados Unidos é exatamente a denúncia contra o tratamento diferenciado que os homens negros recebem da polícia. Há uma profusão de vídeos que mostram a reação descontrolada de policiais brancos contra homens negros.
Apenas para ficar nos casos recentes.
No ano passado um grupo de policiais imobilizou e matou Eric Garner por asfixia [vídeo], nas ruas de Nova Iorque. O crime cometido por ele? Vendia cigarros nas ruas, sem pagar impostos. Enquanto os policiais o dominavam ele gritou por diversas vezes “I can’t breathe!” (“eu não consigo respirar”).
Em outro caso, na cidade de Dallas, dois policiais mataram Jason Harrison, um homem negro com problemas psicológicos, que os atendeu em sua casa segurando uma chave de fenda.
Alton Sterling foi executado com tiros na cidade de Baton Rouge, após ser dominado por policiais. Seu crime? Vender cd’s de maneira irregular.
O caso mais recente foi o de Philando Castile, cuja noiva transmitiu em tempo real sua agonia e morte. Ao que consta, ele foi pegar sua carteira de motorista e documento do carro, mas o policial pensou que ele sacaria uma arma
Os movimentos civis denunciam o “white privilegie” (“privilégio branco”). A polícia americana (e brasileira também) trata crimes iguais de maneira desigual a depender da etnia do contraventor.
Um exemplo hediondo: Dylann Storm, homem branco que entrou em uma igreja em uma comunidade negra na cidade de Charleston, matando 9 pessoas, foi preso e levado à delegacia. Lá, para aplacar sua fome durante o depoimento, os policiais compraram-lhe um lanche no Burguer King.
A campanha civil em andamento tem por lema a seguinte frase: black lives matter. Ou seja, “vidas negras importam”.
O que os manifestantes estão afirmando é que a vida de um negro tem o mesmo valor que a de um branco. Ambos são igualmente humanos, ambos devem ser tratados iguais.
E isso, no ano de 2016 depois de Cristo, segue sendo uma ideia revolucionária e utópica; tal como era revolucionário e utópico o sonho de Luther King em 1963. Infelizmente.
Alexandre Andrada é professor de Economia da Universidade de Brasília (UnB)
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