(Uol, 20/07/2016) Um bebê com microcefalia entregue à adoção no início do surto da epidemia no Brasil causou comoção –mas agora se sabe que a mãe da criança não teve zika. Ela teve sífilis.
A microcefalia é uma das consequências pouco lembradas da infecção bacteriana geralmente transmitida por contato sexual. Em seis anos, a taxa de incidência da sífilis em bebês com menos de um ano quase triplicou. Passou de 2 a cada mil nascidos vivos, em 2008, para 5,6 a cada mil nascidos vivos, segundo dados preliminares do Ministério da Saúde. Foram 16.266 casos registrados em 2014.
Nesse mesmo período, a taxa de sífilis em gestantes passou de 2,7 para 9,7 casos a cada mil nascidos vivos.
A sífilis causa morte de cerca de 30% dos bebês infectados e sem tratamento durante a gravidez, além de gerar vários problemas de desenvolvimento nas crianças nascidas com a doença, como má-formação, surdez, cegueira, pneumonia, feridas no corpo, dentes deformados e problemas ósseos.
Os anos de 2014 e 2015 foram desafiadores para o tratamento da sífilis no Brasil. Além do aumento de casos por falta de prevenção sexual, houve falta de dois tipos de penicilina –remédio essencial no tratamento.
Tanto a penicilina benzatina, que trata as mães para evitar a transmissão ao bebê, quanto a cristalina, para tratar as crianças, entraram na lista de remédios em falta na rede pública. E isso não aconteceu apenas no Brasil.
O problema é que a produção da penicilina cristalina está nas mãos de empresas da China e da Índia, que fornecem a matéria-prima para laboratórios no mundo todo fabricarem a penicilina. E até junho, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) barrava a compra de alguns fornecedores por falta de registro de matéria-prima. No entanto, a agência decidiu dispensar esse registro até dezembro de 2016 por conta do aumento de casos da doença no país.
Doença não é vista como perigosa pela população
De transmissão sexual, como a Aids, a infecção é menos conhecida e menos temida pela população. Assim, doentes deixam de se tratar e a doença, que deveria ser de cura simples, entra em um círculo vicioso.
O tratamento dura três semanas e não precisa de internação, mas é necessário que ambos os parceiros tomem a penicilina.
Há pessoas que têm sífilis, mas o parceiro/a não toma penicilina. Fica rodando sífilis, isso não vai parar nunca. Então não é só penicilina. Acho que precisamos cada vez mais trabalhar para mudar essa cultura.”
Jacob Samuel Kierszenbaum, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia
Fábio Mesquita, ex-diretor do Departamento de DSTs do Ministério da Sáude, explica que a transmissão da sífilis é mais fácil do que a da Aids, por exemplo. A bactéria da sífilis, além de ser mais resistente do que o vírus HIV, está mais presente nas lesões, o que facilita a transmissão.
“Além disso, a comunidade que vive com o HIV está em tratamento sempre, tem menos tendência de espalhar. Estimamos que 87% das pessoas que têm HIV sabem de sua condição e são mais conscientes que as pessoas que têm sífilis”.
Mesquista diz ainda que a exigência de receita médica para antibióticos pode ter tido um efeito deletério para os casos de sífilis.
“Como sífilis tinha tradição de ser tratada em balcão de farmácia e o acesso ao médico é mais difícil que à farmácia. Tinha erro, mas muitos casos se tratavam bem. Foi um fator secundário, mas influenciou”, aponta.
Comportamento sexual e cultura da prevenção
O aumento de transmissão da doença está relacionado com a mudança de comportamento sexual do brasileiro, que deixou de lado o uso de preservativos em relações sexuais. Médicos ouvidos pelo UOL citam o aumento da doença entre jovens héteros e homossexuais em todas as classes sociais.
Uma pesquisa do Ministério da Saúde divulgada em 2015 aponta que 45% da população sexualmente ativa do país não havia usado preservativo nas relações sexuais casuais nos últimos 12 meses.
“Esses números são apenas a ponta do iceberg. Isso vem ao encontro com o que nós, clínicos, temos visto na prática: no consultório de todos infectologistas o número de casos de sífilis aumentou barbaramente”, diz Artur Timerman, infectologista em São Paulo.
Artur Timerman, infectologista
Falta prevenção até para as grávidas
Mauro Romero, presidente da Sociedade Brasileira de DST e professor da Universidade Federal Fluminense, ressalta que a falta de cultura da prevenção no país atrapalha o controle da doença. “Não conheço país que não tenha sífilis, mas não tem o número absurdo que temos aqui”, diz.
Segundo o médico, os problemas vão desde o início tardio do pré-natal até demora para exame ficar pronto, demora para conseguir marcar consulta e dificuldade para ter uma equipe que faça um trabalho ativo para informar grávidas que foram diagnosticadas e não foram recolher o resultado do exame.
“O número de mulheres com diagnóstico de sífilis no terceiro trimestre (9, 8 e 7 meses) muitas vezes é maior que no primeiro e segundo em alguns Estados”, diz. A falta de diagnóstico é agravada pela falta de penicilina na rede pública, droga “primordial para tratar a sífilis”.
Quanto mais cedo o diagnóstico, mais fácil será o tratamento. Ao mesmo tempo, quanto mais cedo a doença for contraída pela mãe, pior para o feto, explica Kierszenbaum, pois ele está em formação. Uma criança que nasce com sífilis precisa ficar internada por dez dias e toma 14 doses de penicilina cristalina. A criança pode ter sequelas ou não dependendo de quando o tratamento é iniciado. Ou seja, quanto mais tarde na gravidez a medicação é feita, mais chances de riscos ao feto. Após o tratamento, a criança não tem mais sífilis.
Mesquita cita uma maior notificação de casos após a implantação da Rede Cegonha pelo governo. Em nota, o Ministério da Saúde fala de melhoria da vigilância: entre 2008 e 2013, por exemplo, o número de testes realizados por gestantes mais que triplicou, passando de 1,2 milhão para cerca de 4,2 milhões de testes. O órgão também relata que em 2005 apenas 3,8% das gestantes com sífilis eram diagnosticadas nos serviços de saúde –1.863 mulheres–, passando para 62% em 2012 (17.147).
Combate precisa ser ampliado
Apesar dos perigos da sífilis, as ações focadas no combate à sífilis são bem menos comuns tanto por parte do governo quanto de organizações não-governamentais, apontam os especialistas.
Para Romero, há uma falta de valorização do problema. Ele foi um dos médicos que lutaram para que seja criado um Dia Nacional de Combate à Sífilis, cujo projeto já foi aprovado na Câmara e falta ser levado à pauta no Senado. Há uma petição online para pressionar a votação do projeto.
O médico afirma que essa lei não vai resolver o problema, mas pode trazer visibilidade à causa. “Chamando atenção quem sabe a gente pode fazer testes na rua, teste com todas mulheres em idade reprodutiva e reverter essa situação.”
Paula Moura
Colaboração para o UOL
Acesse o site de origem: Por que a sífilis, que também causa microcefalia, volta a preocupar? (Uol, 20/07/2016)