(CartaCapital, 20/07/2016) Crianças indígenas são alvo de abusos na periferia de São Paulo
Em maio deste ano, um vídeo começou a circular nas redes sociais revelando cenas de um suposto estupro coletivo contra uma jovem no Rio de Janeiro. O assunto tomou a pauta dos noticiários. Para a Polícia Civil, não cabem dúvidas: houve violência sexual, enquanto moradores da comunidade onde a garota vivia afirmam que ela costumava fazer sexo grupal e não houve estupro.
Se, mesmo nessas circunstâncias, uma névoa de dúvidas ainda paira sobre o episódio, então o que ocorre quando a violência sexual se dá dentro de comunidades indígenas, contra crianças e adolescentes, e envolve até mesmo o crime organizado?
São Paulo, outubro de 2015. Uma ação civil pública é ingressada pelo Ministério Público contra órgãos federais, estadual e municipais denunciando estupros e violência sexual contra menores em tribos localizadas dentro da capital paulista.
O caso não ganha repercussão nacional, ninguém é condenado, e o poder público, como de hábito no Brasil, mantém-se inerte. CartaCapital foi atrás dos detalhes dessa história e levantou depoimentos e documentos chocantes que mostram como a ausência de uma investigação da Polícia Civil e falhas graves da Secretaria Municipal da Saúde têm falhado no combate a crimes sexuais que envolvem crianças, prostituição de adolescentes e consumo de álcool e drogas. Muitas drogas.
O enredo tem início em 2013, quando o Conselho Tutelar começou a receber denúncias de crimes sexuais em três comunidades indígenas na região do Pico do Jaraguá, na capital paulista. Poucos sabem que cerca de 800 indígenas Guarani residem no extremo oeste do município.
Desde a década de 1970, começaram a chegar do Sul do país e do litoral paulista. Uma das reservas ocupadas está sob litígio e outras duas são consideradas demarcações. Morando em casebres de madeira ou alvenaria, a comunidade mais se parece com a favela de uma grande cidade.
O consumo de álcool e drogas é um problema recorrente e, segundo servidores públicos que trabalham na região, faltam programas de combate ao vício. Como agravante, um terço dos indígenas não trabalha, a maioria depende de transferência de renda e cerca de 80% da comunidade é composta por crianças e adolescentes.
Mulheres e homens revelam, em conversas reservadas, que não usam contraceptivos, e quem passa pela área se impressiona com a quantidade de crianças desacompanhadas. Um ambiente propício à exploração sexual. Quando as primeiras denúncias chegaram ao Conselho Tutelar, imaginava-se que fosse um “caso pontual”, como chegou a noticiar a imprensa no ano passado. Não era bem assim.
Inicialmente, apurou-se, por meio de um laudo antropológico da Funai, a existência de dois incidentes de abuso sexual de menores, cujos responsáveis pela guarda eram alcoólatras. Uma das denúncias identificou que o pai utilizaria a filha para obter troca financeira, segundo uma das testemunhas da apuração do Ministério Público: “Eu acho que o que fomenta a prostituição lá é essa questão da dependência (drogas e álcool)”.
É comum que vítimas de agressão sexual não apresentem denúncia por constrangimento ou pela falta de estrutura do Estado. A quem caberia identificar os casos de exploração sexual, segundo a apuração, não o faz.
Conforme conselheiros tutelares, desde 2011 apenas duas queixas chegaram pela Unidade Básica de Saúde. Um dos laudos antropológicos realizados durante as investigações revela a gravidade do caso. “Há nesse contexto uma constatação de que o número de abusos de menores e de mulheres tem aumentado de forma assustadora e que é preciso alguma atitude dos órgãos responsáveis.”
Após o ingresso da ação judicial pelo MPF, um ex-diretor da UBS, localizada dentro da comunidade, afirma que o assunto foi silenciado: “As denúncias e a procura por ajuda nesses casos têm sido profundamente reprimidas”. Não foi o que se deu, quem afirma é uma das testemunhas da investigação. De acordo com ele, os relatos sobre os abusos não são encaminhados ao Conselho Tutelar da região. “Desde 2010, informa, recebemos apenas duas denúncias por meio de UBS, embora saibamos que foram diversos casos.”
A complicar a situação, a investigação revela que uma das funcionárias da unidade de saúde encarregada de encaminhar as denúncias de violência contra as crianças à PM e ao Conselho Tutelar, não se sabe por qual motivo, não trabalha mais no local. Atualmente, parte das funcionárias que atuam na UBS é de indígenas, e, de acordo com funcionários públicos, elas seriam coagidas pelas lideranças da comunidade a ficar em silêncio.
Não bastasse a falta de auxílio da UBS, quem procura a delegacia da mulher mais próxima também se vê à mercê da indiferença ou até mesmo de negligência por parte das autoridades. Quem afirma é alguém qualificado para acompanhar a rotina das crianças nas comunidades indígenas. No início do ano foram levadas crianças de uma mesma família para que fosse denunciado um caso de abuso.
Resultado: foi informado na delegacia que o Boletim de Ocorrência não poderia ser relatado como criminal porque a criança tinha dificuldade em se manifestar. Parte dos menores que moram na comunidade fala apenas o guarani. Pior: o laudo sexológico que revelaria os abusos até hoje não ficou pronto. “Com uma situação dessas, quem vai querer denunciar alguma coisa?”, questiona.
Foi graças a uma funcionária da UBS, que trabalhava na unidade, é que foi identificado o abuso contra duas crianças, uma de 7 e outra de 8 anos. A servidora percebeu que as duas apresentavam contaminação por HPV e informou ao Conselho Tutelar. Após o ocorrido, as mulheres acabaram impedidas pelas lideranças indígenas de ter contato com a funcionária.
Em outro caso, relata uma testemunha, um dos índios acusados de abusos teria rido ao sair de uma delegacia após ser ouvido em depoimento. “Ria da nossa cara, porque diz que são inimputáveis, não são, mas trazem essa fala muito forte”, conta a testemunha.
De acordo com o MPF, apenas indígenas em áreas isoladas estariam fora do alcance da lei penal, o que não é o caso da comunidade da capital paulista. Seus integrantes usam celulares, computadores e televisores. Até mesmo máquinas de jogos eletrônicos foram apreendidas na comunidade.
O trabalho da Funai também é alvo de críticas da investigação, conforme o inquérito: “Os funcionários da Funai ouvidos declararam ter ciência da ocorrência de estupros de crianças e adolescentes das aldeias do Jaraguá”.
A ineficiência do órgão fica evidenciada no depoimento do então chefe da coordenação regional do litoral sul de São Paulo. “A gente começou a tomar pé do que acontecia nas aldeias e aí a gente ainda estamos (sic) tendo uma certa dificuldade de interagir principalmente esses assuntos relacionados a estupros, à violência sexual.
A apuração conduzida pelo procurador da República Matheus Baraldi Magnani aponta que a Funai teria se limitado a criar um grupo técnico para estudar o problema do alcoolismo na região. “A medida apresentada pela Funai como resposta à epidemia de alcoolismo e uso de drogas ilícitas pelos indígenas das aldeias do Jaraguá é extremamente vaga, meramente platônica e incapaz de gerar recuperação de qualquer usuário: a recuperação de um usuário deve envolver o tratamento ambulatorial e eventual internação nos casos mais graves”, afirma Baraldi.
E os casos acabaram se multiplicando. Uma liderança indígena afirmou que havia suspeitas de que duas adolescentes estariam em situação de exploração sexual, praticada por não indígenas. Os relatos também dão conta de jovens adolescentes viciadas em cocaína, frequentemente vistas em bares a trocar favores sexuais por drogas e bebidas. A vigilância pela Polícia Militar acabou reforçada a partir do ano passado, mas ainda está longe da eficácia necessária.
A necessidade da presença da PM tem razão clara. Nas proximidades das tribos há uma comunidade pobre a qual traficantes a usam como base para distribuição de drogas na região. “Eles vêm vender droga na aldeia, assim como tem índio que vai lá buscar também”, conta um dos índios.
O Ministério Público Federal pede que seja feita uma triagem para identificação de indígenas viciados a serem encaminhados para tratamento, a elaboração de políticas de prevenção, policiamento ostensivo da PM e que a Funai crie uma ferramenta de denúncias para as vítimas comunicarem os crimes de forma sigilosa.
A Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo não informou por que a Polícia Civil não participa dos grupos de trabalho e por qual motivo não investiga o caso. A Funai não se manifestou.
A Secretaria Municipal da Saúde não informou como funciona o fluxo de informações entre a UBS e as autoridades. Esclareceu que se pronunciaria ao ter conhecimento de todas as denúncias presentes na ação ingressada pelo Ministério Público Federal.
por Henrique Beirangê
Acesse no site de origem: O crime sexual cerca a tribo (CartaCapital, 20/07/2016)