(O Globo, 21/07/2016) A ativista Deborah Small está no Rio para duas palestras nesta quinta-feira.
Uma das mais importantes ativistas no movimento negro americano, Deborah Small é formada em Direito e Políticas Públicas pela Universidade Harvard e atua em defesa dos direitos dos pobres e de presos. Há cerca de dez anos, ela criou a organização Break the Chains, com a missão de conscientizar sobre os efeitos negativos da guerra às drogas sobre essa parcela da população. Deborah está no Brasil para uma série de palestras no Rio, São Paulo e Salvador. Nesta quinta-feira ela estará, às 9h30m na Escola de Magistratura, e às 19h, no Centro Cultural da Justiça Federal, ambos no Rio.
Nesta entrevista, Deborah fala sobre política de drogas e avalia o trabalho do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam, em tradução livre) nos Estados Unidos, um país estremecido pela crescente violência entre policiais e cidadãos afro-descendentes. Ela diz que a guerra às drogas deve ser vista como um sucesso daqueles que a promovem, porque “facilita a criminalização de múltiplas gerações de pessoas pobres e negras”. Segundo Deborah, quando as pessoas são classificadas como criminosas por usarem drogas, a sociedade não se sente mais na obrigação de lidar com as condições sociais ou econômicas por trás disso.
Você costuma dizer que a guerra às drogas não deve ser vista como um fracasso, mas como um sucesso. Por quê?
Eu acredito que o principal propósito da guerra às drogas é prolongar o sistema de controle político e de exploração econômica das comunidades negras que está na fundação da riqueza do império anglo-americano e que atua como um agente unificador para muitos americanos brancos. A “guerra às drogas” tem sido um sucesso porque facilita a criminalização de múltiplas gerações de pessoas pobres e negras, além da capacidade de se lucrar com ela através da expansão do complexo prisional-industrial.
A seletividade do sistema penal e o uso letal da força pela polícia são uma realidade nos EUA e no Brasil. A população negra está sobrerrepresentada no sistema carcerário em ambos os países e são as principais vítimas de violência policial. Como você explica esses fenômenos?
O entendimento sobre o que constitui “ser branco” existe em relação direta ao que se entende por “ser negro”. Branca é a cor do poder e do privilégio — negra é a cor da subjugação e da exclusão. Esse entendimento racial está impregnado na nossa história, nas nossas leis, nas nossas políticas e é culturalmente reforçado de maneiras diversas e dissimuladas. A polícia é o principal instrumento de sustentação da hierarquia racial que está no coração da “identidade americana”. As atividades policiais atuais nos bairros pobres e negros refletem as práticas e políticas impostas sobre os afrodescendentes durante a escravidão e o subsequente sistema legal de segregação. Há uma continuidade de propósito e de efeito entre as políticas de justiça criminal de outrora, cujos alvos principais eram os negros, e as leis criminais de drogas atuais, que, de maneira parecida, punem os negros desproporcionalmente. Em muitos sentidos, é a história se repetindo — as origens do Estado penal moderno estão enraizadas nos ajustes que as elites sulistas fizeram após a Guerra Civil para manter o sistema de controle e exploração da população negra.
Há uma relação entre o início da guerra às drogas e os movimentos por direitos civis nos Estados Unidos?
O sistema de discriminação racial apoiada pelo Estado se tornou mais difícil após o surgimento do movimento por direitos civis. Não era mais viável politicamente que o governo sustentasse explicitamente a supremacia dos homens brancos. Ao mesmo tempo os líderes negros se tornaram mais militantes em suas demandas por maior equidade e oportunidades econômicas. A elevação dos crimes por drogas à categoria de prioridade na aplicação das leis estaduais e federais, combinada ao estereótipo dos usuários de drogas como membros predatórios de grupos étnicos minoritários, justificou a criminalização de comunidades inteiras de pessoas negras pobres, marginalizadas, pouco educadas e precariamente empregadas. Quando as pessoas passam a ser classificadas como criminosas por usarem drogas ou por se envolverem na economia do tráfico, a sociedade não se sente mais na obrigação de lidar com as condições sociais ou econômicas que estão por trás disso.
O que é exatamente o Black Lives Matter e qual é sua avaliação do trabalho dos homens e mulheres envolvidos nesse movimento?
O Black Lives Matter é um movimento iniciado por três mulheres negras para abordar o problema persistente de violência e brutalidade policial. O ímpeto inicial para seu surgimento foi o assassinato de Michael Brown por um membro do Departamento de Polícia da cidade de Ferguson. Michael Brown foi alvejado e morto após se recusar a obedecer a uma ordem da polícia de sair da rua. Após os disparos, o corpo de Michael foi deixado na calçada por mais de quatro horas, exposto ao público. A polícia imediatamente tentou justificar o assassinato caracterizando Michael como um bandido e um criminoso. O Black Lives Matter é também um apelo à comunidade para que priorize a preocupação com as vidas da população negra para que possamos reduzir a violência armada e outras ações que resultem em uma morte prematura dessas pessoas.
Na América Latina há uma discussão crescente sobre os efeitos perversos do sistema de justiça criminal em termos de gênero, especialmente em relação às mulheres negras e pobres. Você vê uma relação entre racismo, gênero e o sistema de justiça criminal?
Criminalizar o uso, o abuso e a venda de drogas ilegais tem pouco efeito na oferta e na demanda dessas drogas nos Estados Unidos. Isso levou, no entanto, a altíssimas taxas de encarceramento de mulheres. Mulheres negras, que usam drogas em níveis iguais ou menores do que as mulheres brancas, são mais severamente afetadas pelas leis e pela política de droga atual do que qualquer outro grupo. Esses efeitos raciais discrepantes são resultado, na maior parte, de práticas criminais racialmente seletivas. O teste seletivo de mulheres negras grávidas para o uso de drogas e a maior vigilância de mães pobres e negras para prevenir casos de violência e negligência contra crianças exacerbam as disparidades raciais entre essas mulheres.
Há um claro movimento progressista nos Estados Unidos em relação à maconha. Além do uso medicinal, alguns estados já legalizaram a maconha também para uso recreativo. Como você avalia o impacto dessas mudanças no médio e no longo prazo na população pobre e negra?
Eu acredito que a reforma nas leis sobre maconha é parte integral da desconstrução da guerra às drogas global. A proibição das drogas é vendida ao público como uma política direcionada a criminosos e predadores que promovem o vício e lucram com a miséria alheia. A realidade é que a maioria das prisões por drogas nos EUA e no mundo é por posse e, especialmente, de maconha. Os estados que implementaram programas de maconha medicinal têm visto uma diminuição significativa nas prisões relacionadas a drogas sem que tenha havido um aumento no uso ou abuso de maconha, inclusive entre a juventude. Uma vez que a juventude afro-americana e latina é excessivamente visada pela polícia por questões relacionadas à maconha, os esforços para descriminalizar e/ou legalizar essa substância são benéficos para as pessoas pobres e negras.
O que seria uma política de drogas justa e efetiva em relação às pessoas negras e pobres e à população em geral, nos EUA e no Brasil?
Na minha visão, a política de drogas ideal é não haver política criminal de drogas. Isso significaria tratar o uso e a dependência de drogas como questões de saúde pública, de maneira similar a como fazemos com o álcool e com o tabaco. Nós temos leis e práticas para regular o uso desses produtos que causam dependência sem nos apoiar na punição e no encarceramento. O principal problema com as convenções da ONU sobre drogas é que elas requerem que todos os signatários punam as pessoas envolvida com drogas.
Que impacto a guerra às drogas levada a cabo pelos EUA tem nas economias da América Latina em geral e no Brasil especificamente?
O impacto tem sido devastador para as economias e governos da América Latina. A proibição das drogas funciona como uma espécie de alquimia que transforma plantas em ouro. Há poucos produtos que os camponeses locais possam plantar que gerem lucros comparáveis aos que derivam da plantação de coca e papoula, e a demanda insaciável por essas drogas nos EUA garante que sempre haverá um mercado para elas. Em países com uma grande população de pessoas pobres, sempre haverá quem esteja disposto a correr os riscos associados à ilegalidade pela promessa de lucros rápidos e consistentes. Como conflitos em torno de atividades criminosas não podem ser resolvidos pelas vias legais, eles terminam sendo resolvidos nas ruas, frequentemente por meios violentos e/ou ameaçadores.
Que papel o Brasil pode ter na reforma das políticas globais sobre drogas?
O Brasil pode desempenhar um papel importante na promoção de reformas nas políticas globais ao trabalhar junto a outros países latino-americanos com o objetivo de desmantelar a proibição global e criar um sistema de controle de drogas baseado na ciência, na saúde e nos direitos humanos. A guerra às drogas americana não funcionou para o Brasil. Em vez de reduzir o consumo e o abuso de drogas, a erradicação de cultivos, a interdição de laboratórios de produção e outras abordagens pela via da oferta levaram a mais violência, sofrimento, miséria e morte. Pode-se definir insanidade como fazer a mesma coisa repetidamente esperando resultados diferentes. A guerra às drogas é uma política insana – é tempo para uma nova abordagem que promova nossa saúde mental e pública.
por Julita Lemgruber / Especial para O Globo
Acesse o site de origem: ‘A guerra às drogas facilita a criminalização de pobres e negros’ (O Globo, 21/07/2016)