(El País, 23/07/2016) Ao EL PAÍS, pesquisadora fala sobre a importância de combinar a luta contra o machismo e o racismo
Mestre em filosofia política, é uma das principais referências no movimento feminista negro
O estupro coletivo de uma adolescente de 16 anos no Rio de Janeiro provocou um intenso debate sobre a cultura do estupro, além de uma série de manifestações pelo país contra o machismo —e também contra o racismo. O motivo: a violência contra mulheres negras disparou e, embora há quem queira desqualificar o debate (chamando-o de um mimimi feminista), além desse episódio (a vítima era uma jovem negra e pobre), dados do Mapa da Violência de 2015 confirmam o problema. Para Djamila Ribeiro, 35 anos —uma das mais conhecidas ativistas do movimento feminista negro atual—, somente desconstruindo o mito de país harmônico livre de racismo é que será possível criar políticas eficazes para enfrentar a violência de gênero.
Djamila é pesquisadora e mestre em filosofia política pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), blogueira, mãe de uma menina de 11 anos, e que há dois meses é também a secretária-adjunta de Direitos Humanos da cidade de São Paulo. Em entrevista ao EL PAÍS, ela falou sobre as diferentes lutas dentro do movimento feminista e o racismo enraigado em nossa cultura.
Pergunta. O caso do estupro coletivo no Rio, em maio, provocou uma reação feminina muito forte no país. E também levantou um debate sobre a questão do racismo e da cultura do estupro. Qual a relação entre esses dois problemas?
Resposta. A cultura do estupro ficou evidente porque houve um ato brutal no Rio. Mas ficou claro como a maior parte da sociedade vê isso como um fenômeno, algo pontual. Essa discussão feita pelo movimento feminista é importante para mostrar que isso faz sim parte de uma cultura, um desdobramento do machismo. Na questão racial, a gente precisa discutir por que as mulheres negras são as que mais sofrem esse tipo de violência. Uma pesquisa da Unicef chamada Violência Sexual mostra que as mulheres negras são as mais vitimadas por essa violência. Não é um fenômeno. Faz parte de uma estrutura. Se for pegar o contexto histórico do Brasil, a gente tem um país com mais de 300 anos de escravidão, uma herança escravocrata. E que no período da escravidão as mulheres negras eram estupradas sistematicamente pelos senhores de escravo. Quando a gente fala de cultura do estupro é necessário fazer essa relação direta entre cultura do estupro e colonização. Tudo está ligado, um grupo que combina a dupla opressão: além do machismo, sofre o racismo. Claro que todas as mulheres estão vulneráveis, suscetíveis a essa violência sexual. Mas quando a gente fala da mulher negra existe esse componente a mais que é o racismo. Existe também essa questão de ultra-sensualizar a mulher negra, colocar ela como objeto sexual, como lasciva… São tão desumanizadas que até a violência contra elas de alguma forma se quer justificar. Se eu luto contra o machismo, mas ignoro o racismo, eu estou alimentando a mesma estrutura.
P. Existe uma falha no diálogo dentro do movimento feminista?
R. Dentro do feminismo, existe uma discussão que as mulheres negras tentam levantar desde os anos 70, que as mulheres brancas, de certo modo, acabaram universalizando a categoria mulher, não percebendo que existem varias possibilidades de ser mulher: a mulher negra, a mulher branca, a mulher indígena, a mulher lésbica, a mulher pobre… Mas quando a gente não pensa nessas diferenças entre nós, deixamos um grupo grande de mulheres de fora desse diálogo. O movimento feminista, durante muito tempo foi um movimento de mulheres brancas da classe média que estavam preocupadas com as opressões que atingiam somente a elas, ignorando as opressões que as outras mulheres, numa posição ainda mais vulnerável, sofriam. Não ter esse entendimento de que somos diferentes faz com que muitas vezes as mulheres que têm algum privilégio fiquem reproduzindo opressões sobre as que estão numa posição mais vulnerável. Essa é a discussão que o movimento feminista negro traz. A gente também quer ser representada. A gente não pode pensar somente naquilo que nos atinge, senão vamos perpetuar o mesmo poder que queremos combater. Então é preciso que as mulheres que têm algum privilégio se abram para o debate. Não vejam isso como uma afronta ou como briga.
P. Você escreve em um dos seus artigos sobre essas diferentes lutas dentro do movimento feminista. Que em determinado momento da história, as mulheres brancas lutavam pelo direito ao voto, ao passo que as mulheres negras lutavam para serem vistas como seres humanos pela sociedade. Trazendo para os dias de hoje, quais as principais diferenças entre as bandeiras atuais dentro do movimento?
R. Acho que o diálogo melhorou bastante de uns anos pra cá. Mas vamos pegar por exemplo a questão da violência doméstica. A pesquisa Mapa da Violência 2015 mostrou que nos últimos dez anos, período desde o qual existe a Lei Maria da Penha, diminuiu em 9,6% o assassinato de mulheres brancas no Brasil e aumentou em 54,8% o de mulheres negras. É um número absurdamente alto. Se for pegar a questão do mercado de trabalho, por exemplo, o número de empregadas domésticas: mulheres negras ainda são maioria. A questão do aborto: as mulheres negras são as que mais morrem, porque sendo o aborto um crime, as mulheres que têm uma condição financeira melhor fazem com segurança, e essas mulheres que não têm estão morrendo… É necessário ver que as mulheres negras precisam de um olhar específico para elas. É romper com esse olhar de política universal, que muitas vezes só atinge a um grupo especifico. Se há um grupo que é mais vulnerável, aquele grupo precisa de mais atenção. É uma minoria dentro da minoria.
P. O fato de não reconhecermos que as mulheres negras são mais vulneráveis vem da dificuldade de o brasileiro reconhecer que é racista? Isso vem da nossa educação?
R. É uma ótima pergunta. Porque o Brasil é um país de maioria negra, mas a gente não debate racismo de forma efetiva. E acho que é muito por conta desse mito da democracia racial que foi criado no Brasil. De acreditar que aqui não existia racismo. De que racismo é o que existia nos Estados Unidos ou na África do Sul, porque lá estava na Constituição, enquanto que aqui no Brasil não tinha isso… Mas não reconhecendo que aqui você tem o racismo institucional. Eu sempre dou o exemplo da USP [Universidade de São Paulo], que acho um clássico: se você chega lá e vê qual a cor das pessoas que estão limpando e qual a cor das pessoas que estão dando aula? Então existe uma segregação no Brasil muito marcada, mas o que nos falta é discutir de maneira mais efetiva, porque a gente foi criado num mito de harmonia das raças, de que a gente se dá bem, de que estamos num país miscigenado. Não dizendo que parte dessa miscigenação foi fruto do estupro de mulheres negras, das mulheres indígenas… Onde querem louvar muito as pontes que existem, mas não quer falar dos muros que nos separam. E isso está muito por conta dessa dificuldade de ver o Brasil como um país racista. A gente precisa trabalhar isso de forma mais efetiva na educação.
P. Qual deve ser o papel do homem para ajudar a acabar o machismo?
R. Eu acho que é sobretudo discutir masculinidade. Essa masculinidade hegemônica como foi construída está diretamente ligada à questão da violência e da agressividade. Desde muito cedo o menino foi criado para ser o macho, pra ser o provedor, o violento, o agressivo. Se a gente vive em uma sociedade onde os homens estupram as mulheres, é porque a gente está criando homens que acham que podem fazer isso. Isso deveria ser o ponto principal: como é que desconstrói essa masculinidade violenta? Discutindo entre eles eu acho que seria fundamental. Eles podem e devem ser parceiros e aliados apoiando nossas lutas, dando visibilidade… Se é professor, debatendo o tema em sala de aula. Se é empregador, pagando o mesmo salário para homens e mulheres na mesma função, criando maneiras de mulheres que são mães de trabalhar. Se é professor de universidade pública, apoiando a luta das alunas por creches nas escolas, porque creche também é permanência estudantil. Está no meio dos amigos, o amigo assediou uma mulher, fala pro amigo que aquilo é assédio, não é cantada. Está dentro de casa, divida as tarefas domésticas, a responsabilidade pela criação dos filhos. Isso é uma ajuda imensa ao movimento feminino, sem necessariamente ter que pegar um microfone e falar por nós. Então parte muito dessa ação concreta que eles podem fazer, que eles devem fazer, porque essa masculinidade hegemônica está matando a gente. É importantíssimo que os homens estejam dispostos a desconstruir isso.
P. Existem várias mulheres que têm medo de se assumir feministas, que acham que o feminismo é algo ruim. Como você vê isso?
R. Eu acho que ninguém nasce sabendo da opressão que sofre. É uma consciência que a gente vai adquirindo ao longo do tempo. Então tem um outro lado que o machismo conseguiu fazer muito bem que é criar esses mitos em torno do feminismo, que foi mais uma forma de impedir com que essas mulheres se juntem. Porque quanto mais as mulheres se unirem, melhor é para que a ideologia seja manifestada. Então criou-se os mitos de que feminista odeia homem, de que mulher feminista é uma mulher muito agressiva… como um modo de afastar as mulheres dessa ação. Quando você entende o que é feminismo, não tem razão nenhuma para você não querer ser feminista. Se ser feminista é lutar para que mulheres tenham equidade, para que mulheres sejam tratadas como seres humanos, para que a gente viva numa sociedade igualitária e justa, não tem porque você não ser.
P. O que é a chamada interseccionalidade do feminismo?
R. Os movimentos operam na mesma lógica da sociedade. Ficam excluindo e elegendo o alvo que querem trabalhar. Então o movimento negro que luta contra o racismo, por exemplo, tem um olhar muito masculino; no movimento feminista, há um olhar muito branco; já o movimento LGBT privilegia o homem gay branco… Então a interseccionalidade é pensar como criar meios de pautar nossas políticas de modo que a gente dê conta dessa diversidade. Senão vamos só continuar elegendo quais vidas são importantes e quais vidas não são. (…) Na hora de pensar políticas eu preciso ter um olhar interseccional, porque eu preciso atingir grupos mais vulneráveis. Então se eu universalizo [um grupo ou uma luta] eu não nomeio o problema. E se eu não faço isso, essas pessoas ficam na invisibilidade, os problemas delas sequer são nomeados e, se eu não nomeio o problema, eu sequer vou conseguir pensar numa solução.
P. Mudando um pouco de assunto, o que você acha do movimento Escola Sem Partido?
R. É um retrocesso. Eu acho engraçado esse argumento porque nada está isento de ideologia. A partir do momento em que eles estão usando esse argumento, estão falando a partir de uma ideologia, uma ideologia excludente. De uma ideologia que é o reforço da ordem estabelecida, para que esses temas continuem na marginalidade. Debater esses temas é justamente pra gente entender que essas pessoas existem, o quanto que é necessário a gente educar para o respeito. Eu não gosto desse termo “tolerância”. As pessoas tem que ser respeitadas. E o quanto é importante tratar esses temas nas escolas, que podem ser um espaço muito importante de transformação de mentalidade. Mas, da forma como está hoje de uma maneira geral, acaba justamente sendo um local de reprodução de violência. Tem que ensinar português e matemática, e tem que ensinar as questões de gênero, as questões raciais… porque todos esses temas são transversais e têm que ser trabalhados em todas as disciplinas. Quando a gente começa a estudar esses temas, estamos empoderando grupos, dando voz a grupos que nunca tiveram, pessoas que vão começar a reivindicar direitos. E tudo isso significa perda de privilégio dessas pessoas que estão no poder.
Marina Novaes
Acesse no site de origem: “É preciso discutir por que a mulher negra é a maior vítima de estupro no Brasil”, declara Djamila Ribeiro (El País, 23/07/2016)