(HuffPost Brasil, 28/07/2016) Chega aqui, Biel, deixa eu bater um papo contigo, sem briga e sem bronca. Eu quero é conversar porque, de verdade, boto fé que você estava só brincando. Acredito mesmo que você não teve intenção de assediar ou humilhar qualquer mulher, nem na primeira vez que disse àquela repórter que “a quebraria no meio”, nem quando disse que era só brincadeira e nem quando, há poucos dias, repetiu seu “te quebro no meio” no palco de uma festa. Mas chega aqui, Biel, e me deixa tentar te explicar por que ficamos tão putas com o que pra você foi só uma brincadeira.
Nós somos cerca de 100 milhões de mulheres espalhadas por esse Brasil enorme onde você viaja com seus shows. Todos os anos mais ou menos 500 mil – ou meio desses 100 milhões – são estupradas. Eu não sou muito boa com números e imagino que você também não seja, mas vamos fazer um esforço e tentar entender o que esses números dizem a respeito do que é ser mulher no Brasil. Dividindo os 500 mil pelos 100 milhões, Biel, a gente fica sabendo que , todo ano, de cada 200 brasileiras, uma é estuprada.
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Pensa num show seu. Quantas mulheres te assistem? Pra quantas mulheres você cantaria se a Prefeitura do Rio, motivada por essa treta toda, não tivesse cancelado seu show? Umas 10 mil, 20 mil? Quando você cantar pra uma plateia de 20 mil mulheres, Biel, saiba que ali tem umas 100 que já foram estupradas.
São muitas as situações em que a gente fica pensando se chegou a hora de entrar para as estatísticas de estupro e agressão.
Não é culpa sua ou das suas músicas. Digo isso pra reafirmar que a intenção desta carta não é dar bronca. Na real, se você quer saber, eu acho que esse lance de ficar decidindo quem é culpado não leva a muita coisa. Mudança acontece quando tem gente disposta a mudar, não quando a gente consegue decidir de quem é a culpa. Então te peço pra seguir comigo de guarda baixa, agora sabendo com quanta mulher estuprada você cruza todos os dias da sua vida.
Você, imagino, acabou de ficar sabendo, mas a gente já sabia mesmo sem conhecer os números. É que essa conta assustadora que eu fiz aí em cima a gente vive todo dia. É muito corriqueiro a gente se perguntar se é dessa vez que seremos estupradas. Cara, você não tem noção do alívio que dá quando eu chamo um táxi ou uber na volta da balada e vejo que quem vai me levar é uma mulher. Parece bobagem, né? Mas dar de cara com uma de nós ao volante significa que a gente não precisa ficar puxando a saia mais pra baixo, que pode sentar de qualquer jeito, que não precisa ficar pensando se o caminho maroto do motorista vai mesmo levar a gente pra casa.
São muitas as situações em que a gente fica pensando se chegou a hora de entrar para as estatísticas de estupro e agressão. Eu mesma, por exemplo, estuprada nunca fui, mas tapa na cara de homem eu já levei, e também já fui ameaçada com um canivete. Às vezes parece que a gente está dentro de uma pia lutando pra não escorregar pelo ralo das estatísticas. E vem correnteza, e a superfície é lisa íngrime. Vira e mexe a gente sente que vai ser tragada por aquele buraco negro e virar mais uma mulher esvaziada pelas marcas da violência.
Você entende, Biel, o que é a sua brincadeira no meio disso tudo? Você estava brincando quando disse que quebrava aquele repórter no meio, mas a real é que pra nós não tem brincadeira nenhuma, porque a gente está mesmo sendo quebrada, muito e o tempo todo. Quando a gente ouve um “gostosa” na rua, talvez o cara pense que está só elogiando, mas a gente está se perguntando se chegou a hora de sermos arrastadas para aquele grupo de uma em cada 200. A gente foge disso o tempo todo, sem nunca ter a sensação de que estamos a salvo. Enquanto você brinca, a gente morre. Enquanto você brinca, a gente transa à força. Entende a assimetria? Entende o pedaço da coisa que você, por ser homem, não entende? Entende que esse medo nunca vai te habitar, nunca vai fazer parte de quem você é?
Então é o seguinte, Biel: para com isso. Para de repetir essa merda, porque ela está acontecendo de verdade com muitas de nós. Imagino que você deva ter ficado puto por o pessoal ter te cortado da tocha e do show no Rio, mas pega esse momento pra aprender algo sobre a situação da mulher. Não faz esse negócio de querer dar o troco. Vi você repetindo sua frase infeliz essa semana e me veio tão forte a sensação de alguém querendo se afirmar, querendo não perder a briga, não deixar de ser o “fodão”… Faz isso não, cara. Você não é o fodão, nem eu, nem ninguém. A gente é tudo gente, e algumas vezes a gente acerta e outras caga, e de vez em quando a gente precisa dizer “puxa, pisei na bola”. Pensando bem, acho até que se você dissesse isso tinha chance de eu te achar sim meio “fodão”…
Aqui e ali você vai achar uma mulher ferida demais pra te responder com tranquilidade. Seja generoso com elas e entenda que se essas mulheres estão com raiva, elas têm toda razão pra estar com raiva
Mas sério, Biel. O mundo todo já aprendeu que fazer piada com judeu não rola, porque o holocausto exterminou mais ou menos 6 milhões deles na Segunda Guerra. O Brasil está começando a entender que chamar negro da macaco e oferecer banana também não dá, porque a gente arrancou os caras do continente deles e botou pra trabalhar na base do chicote – e as consequências desse nosso desastre histórico ainda estão vivas, muito vivas. Agora chegou a vez das mulheres, e a gente não vai parar e não vai retroceder. Então, de novo, repito que isso aqui não é bronca, mas é convite. Você pode escolher ser mais um babaca que, por desconhecimento, ignorância, medo, vontade de aparecer ou o que for, atrapalha um pouco nossa luta pra fazer o mundo entender que esse bagulho de violência contra a mulher é sério e precisa acabar. Pouco importa sua motivação pra assumir essa postura. Importa que você será um obstáculo, mas também não importa muito, porque nós somos fortes, somos muitas (sabia que somos a maioria da população brasileira?), somos de uma persistência sem fim, e por isso eu te digo com toda a tranquilidade do mundo que nós vamos virar esse jogo. Ou…
Ou você pode se perguntar, com franqueza, por que tanta mina ficou tão incomodada com o seu comportamento. Você pode, ao invés de presumir que somos loucas, frescas, histéricas e mau humoradas, supor que algum caroço esse angu tem pra tanta gente ter ido com tanta força pra cima de você. Se você quiser, a gente te conta, Biel. Pra quem pergunta a gente conta. Aqui e ali você vai achar uma mulher ferida demais pra te responder com tranquilidade. Seja generoso com elas e entenda que se essas mulheres estão com raiva, elas têm toda razão pra estar com raiva. Mas pode chegar, Biel que gente que faz pergunta é sempre bem vinda. A coisa mais bonita do mundo é gente disposta a mudar, a ouvir sobre as experiências que nunca viverá e a dizer, com a grandeza e a simplicidade de quem se sabe humano: “olha só, eu não sabia disso!”. Isso sim é o que eu chamo de ser fodão.
E aí, qual vai ser?
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