(Folha de S.Paulo, 03/08/2016) O “Diário Oficial da União” desta terça-feira (2) traz um documento sinistro, a orientação normativa número 3 da Secretaria de Gestão de Pessoas do Ministério do Planejamento. A norma dispõe sobre aferição da veracidade da autodeclaração de candidatos pretos e pardos em concursos públicos.
A inclusão de cotas raciais entre os critérios para ingresso no serviço público federal decorre de decisão do Congresso sancionada pela presidente afastada, Dilma Rousseff (PT), em 2014. Um mínimo de 20% das vagas fica reservado por dez anos a pretos e pardos.
Em português claro, o novo regulamento estipula a criação de verdadeiros comitês raciais. Pior, tenta encobrir com um manto de equanimidade o trabalho desses fiscais de negritude ao determinar que os membros da comissão deliberativa se distribuirão por gênero, cor e naturalidade.
Se houvesse na matéria margem para troça, seria de perguntar quem vai atestar a veracidade da cor dos próprios comissários. De toda maneira, a questão, por ironia, remete à pura e simples impossibilidade de formar um juízo definitivo e justo acerca da condição racial de uma pessoa.
Sim, pode haver, e ocasionalmente há, má-fé na autodefinição da cor, em especial quando o bônus em vista —um emprego público ou vaga em universidade gratuita— é recompensador. Mas não se conhece forma objetiva de traçar a fronteira entre cores de pele.
A orientação do Planejamento evita a esparrela de amparar-se na ciência, o que tampouco seria factível, pois esta não dispõe de definição inequívoca do que seja raça. Pela norma ministerial, os comitês devem julgar com base apenas nos aspectos fenotípicos do candidato, vale dizer, na sua aparência, e o farão na presença do próprio.
Difícil imaginar situação mais constrangedora, se não humilhante. Terá decerto efeito dissuasório sobre quem cogitar recorrer à porta racial com intenção desonesta, mas parece fadada também a afastar os pretos e pardos que não admitirem passar pela provação.
A autodeclaração pura, desprovida de tal inquérito sobre raça, constitui a única forma de utilizar o critério racial na seleção de funcionários públicos ou estudantes universitários, se isso for inevitável.
Todas as dificuldades seriam contornadas, porém, com o uso de cotas socioeconômicas, como defende a Folha. Elas beneficiariam pretos e pardos de modo automático, pois eles tendem a ser mais pobres, e seriam baseadas apenas em dados mensuráveis, sem recurso a duvidosos juízos subjetivos.
Acesse o PDF: Comissários raciais, editorial do jornal Folha de S.Paulo (Folha de S.Paulo, 03/08/2016)