(BBC Brasil, 03/08/2016) A cineasta Sabrina Fidalgo sabe bem o que é ser única, em todos os sentidos da palavra.
Nasceu e cresceu em ambientes de elite em que, como norma, era a única negra. Durante a infância, na escola, em festas, nas aulas de inglês, no balé, no grupo de amigos, nas lojas e em tantos outros espaços frequentados por famílias com renda equivalente à sua era comum olhar ao redor e não ver ninguém da sua cor.
“Eu cresci em meio a brancos, em ambientes sociais em que praticamente não existiam negros”, relembra.
Aos 36 anos e divorciada, Sabrina continua sendo exceção na área em que trabalha, a indústria cinematográfica. Nos festivais e eventos que frequenta, costuma ser olhada com um já conhecido espanto. O preconceito, mesmo sem intenção, vem muitas vezes sob a forma de um elogio que revela, na verdade, a surpresa com o falso paradoxo entre negritude e beleza.
Para esses admiradores, Sabrina não é simplesmente linda. É uma negra linda.
“Se me dizem que eu sou uma negra linda, respondo: sou mesmo. Não acho que tenha que agradecer por algo natural e que sequer precisa ser mencionado”, afirma.
Ela conta ainda que, em várias ocasiões, a cor de sua pele é a primeira menção feita a ela tanto em ambientes sociais quanto profissionais, o que não ocorre com pessoas de outras cores.
“Às vezes, alguém se aproxima e, mesmo antes de saber o meu nome ou de me conhecer, primeiro faz menção ao fato de eu ser negra, elogiando minha cor, destacando que eu sou a única cineasta negra ou dizendo que sou uma mulher negra bonita. Pode até ser bem intencionado, mas para mim não faz sentido ver a minha negritude se sobrepor à minha personalidade”.
‘Mundo de brancos’
Sabrina faz parte da parcela de brasileiros que ocupam o 1% mais rico do país. Fala português, inglês, espanhol e alemão. Estudou teatro e artes cênicas na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), fez cinema no Brasil, Espanha e na Alemanha e tem no currículo cinco curtas-metragens, um documentário e vários videoclipes.
Viaja constantemente representando o cinema brasileiro no exterior ou para divulgar seus filmes, que já participaram de mais de 50 festivais pelo mundo.
Sua trajetória difere da de muitos negros que hoje também estão no topo da pirâmide da renda social. Ela não teve infância pobre ou pais humildes. Pelo contrário. Do pai, Ubirajara Fidalgo, herdou não apenas bens como a postura combativa contra o preconceito e a paixão pelo cinema e teatro.
Ele foi ativista, dramaturgo, diretor, ator e fundador do Tepron – Teatro Profissional do Negro, entidade fundada nos anos 70 que incentivava atores negros a escreverem seus próprios textos baseados na questão racial.
A mãe, Alzira Fidalgo, também ativista, era figurinista e cenógrafa. Ambos criaram Sabrina com todo o conforto possível e preparada para viver em um mundo de brancos, já que a vida no teatro dava à família condições sociais favoráveis, que permitiam morar em endereços caros em Botafogo ou na Urca, onde Sabrina vive hoje.
Dos dois aos 13 anos, ela estudou em uma escola particular católica e tradicional do Rio. Nesse período, era a única negra. E por ser conhecida desde pequena pelos colegas, não provocava estranhamento.
“Só lá na 4ª série que apareceu outra menina negra, mas ela alisava o cabelo, tinha toda aquela questão do embranquecimento”, relata. No caso de Sabrina, a mãe trançava seu cabelo crespo, do qual tinha orgulho.
E seus pais preparavam o ambiente escolar, pressionando a escola.
“Antes mesmo de me matricular, eles alertaram as freiras. Se eu sofresse qualquer discriminação, botariam a boca no mundo e denunciariam a escola por não educar as crianças ou as famílias sobre a questão do racismo”, lembra Sabrina.
Mas na adolescência tudo mudou. Na escola nova, ninguém a conhecia. Ela passou a enfrentar a discriminação, mas estava pronta para se defender.
“Já nasci vestida para a guerra”, diz. “E as armas que meus pais me deram desde pequena foram a consciência racial e política”.
Orgulho
Ela conta que muito cedo ouviu dos pais a história da África, da escravidão e da importância da cultura negra para o Brasil. Com isso, aprendeu a ter orgulho de si mesma e a acreditar que pudesse ser tudo o que quisesse.
“Meus pais me diziam: você é linda, seu cabelo, sua cor, nossa história. Nunca tenha vergonha de sua raça e nem abaixe a cabeça para nada. Se você quiser ser médica, será. Se quiser ser atriz, também pode ser. Bailarina, miss, o que quiser. Eles diziam que eu era inteligente o bastante para isso”, relembra.
Os conselhos serviram para empoderar Sabrina e dar a ela a condição necessária para enfrentar o racismo quando ele surgiu.
“Em minha nova escola, havia dois professores que eram muito preconceituosos. Um deles só se referia a um aluno negro que era da minha turma como ‘negão’. Ele não conseguia chamar o garoto pelo nome e aquilo me chocava, ainda mais porque o garoto não reagia. Se ele me chamasse de negona eu iria, obviamente, fazer um escândalo”, lembra.
“Já o outro professor se gabava por ter uma avó racista e contava as histórias horríveis dela contra os negros como se aquilo fosse o máximo. Até que eu falei para ele que racismo era errado e bizarro, e que ele não tinha o direito de contar aquelas histórias tendo dois alunos negros em sala de aula. Muito desconcertado, ele se desculpou.”
Para Sabrina, esse episódio marcante de sua adolescência a ensinou a se impor diante de outros.
Ela conta que, já adulta e cineasta, estava em uma feira do setor de audiovisual em Buenos Aires quando ouviu um comentário que a deixou espantada.
“Havia uma delegação de diretores brasileiros, e eu era a única negra entre eles. Um deles chegou e disse ‘que sorte’ a minha por ser cineasta negra, pois levaria vantagem na divulgação do meu filme. Fiquei perplexa. Ele falou de um jeito que transparecia que a minha expertise não contava e que, se eu fosse contemplada, seria mais pelo fato de ser negra do que profissional de cinema”, relembra.
“Ninguém menciona a etnia de um diretor, seja ele branco ou asiático. Por que citar quando o profissional em questão é negro? Eu vejo neste destaque um ranço muito claro de racismo e jamais vou concordar com isso.”
E Sabrina não está equivocada ao pensar assim. O pesquisador da Universidade de Brasília e sociólogo Emerson Rocha afirma que a sociedade brasileira tem expectativas menores sobre as pessoas negras porque estas, em sua maioria e por causa de fatores historicamente sociais, ocupam posições menos prestigiadas.
“A pessoa diz que não é racista, mas discrimina por simplesmente não acreditar que o negro possa ser alguém diferente de uma posição que foi designada a ele no mundo em que vivemos. E todas as vezes que um negro sair desse ‘lugar natural’ ou esperado, ele vai gerar um estranhamento. E isso é racismo, que é ‘ativado’ quando o negro sai desse espaço cativo”, sustenta.
Avanços
Sabrina nasceu nos anos 80, em uma geração menos discriminada que a de seus pais e avós, segundo um estudo de 2005 de Maurício Cortez Reis, pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), e Anna Risi Vianna Crespo, doutora pela Universidade de Princeton (EUA).
Eles compararam gerações de negros nascidas entre 1922 e 1981 e descobriram que a diferença de rendimentos foi diminuindo aos poucos ao longo do tempo.
Nos anos 50, um branco ganhava um salário 100% superior ao de um negro – ou seja, ganhava o dobro. Nos anos 60, essa diferença cai para 60%. Em 1990, quando Sabrina tinha 10 anos, negros representavam 15% da população mais rica e detinham 6% da renda total do país, percentual que ficou inalterado durante toda a década.
Nos anos 2000, ações afirmativas de redução de pobreza e de desigualdade educacional e outros fatores fizeram com que negros saltassem para 17,4% entre os mais ricos a partir de 2014, de acordo com o IBGE.
Para os pesquisadores, essa tendência também pode ser explicada pela redução de práticas discriminatórias entre gerações mais jovens, o que é confirmado por Sabrina.
“Eu sempre tive amigos de todas as etnias e de cabeça muito aberta. Na adolescência, frequentei um mundo mais underground que me fazia sair daquela realidade de moradora padrão da Zona Sul. Meus amigos e eu estávamos muito acima de todas essas amarras, e isso contribuiu para que eu crescesse livre de preconceitos no mundo em que vivi.”
Para ela, as dificuldades vividas pelo negro devem, sim, ser trazidas à tona, mas também as experiências positivas.
“Incomodam muito esses discursos de que só vivências opressivas são legítimas. Soam quase como uma reafirmação do racismo de que, nós negros, só podemos merecer algo mediante à imposição de uma vivência de dor, humilhação, provações e opressões”, opina.
“Descobri que retratar toda pessoa negra em um lugar de opressão é enfraquecedor, deprimente e não combina comigo.”
Esta reportagem integra uma série sobre a vida de negros que fazem parte do 1% mais rico da população brasileira – leia aqui e aqui os outros textos.
Segundo dados do IBGE, o total de negros nesse grupo aumentou cinco pontos percentuais nos últimos 12 anos (de 12,4% para 17,4%), mas ainda está longe de representar o peso da população declarada negra (pretos e pardos), que corresponde a 53,6% dos brasileiros.
Noemia Collona
Acesse no site de origem: ‘Meus pais me prepararam para a guerra’: a vida de uma menina negra nascida na elite (BBC Brasil, 03/08/2016)